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Mulheres cacique fazem história e lideram povos potiguara na Paraíba

publicado: 08/03/2017 00h05, última modificação: 08/03/2017 13h51
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A cacique Nancy já foi prefeita da cidade de Baía da Traição, no Litoral Norte da Paraíba - Foto: Evandro Pereira

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Hilton Gouvêa

Joana, Cal e Nancy. São três nomes pequenos que representam papel estratégico na comunidade dos índios potiguaras de Rio Tinto e Baía da Traição, no Litoral Norte do Estado da Paraíba. A primeira tem 100 anos de idade, 60 netos e muita história para contar. Quando a Paraíba e Pernambuco viviam as batalhas entre tropas portuguesas e os brasileiros revoltosos de 1917, ela nascia numa oca da Aldeia do Forte, em Baía da Traição. A segunda, Cal, se destaca como a segunda mulher na Paraíba a ser eleita cacique e líder de 574 famílias remanescentes. A terceira foi prefeita de Baía da Traição e cometeu a façanha de, no seu primeiro ano de atuação, segundo um censo da Funai, ter realizado 301 partos. Atualmente, cada uma lidera seus irmãos de sangue utilizando seu próprio estilo como matriarcas tribais, sem constranger o orgulho de guerreiros decanos. O dia a dia delas é, literalmente, um verdadeiro desafio. 

A cacique Joana tem 100 anos e nasceu na Aldeia do Forte, em Baía da TraiçãoJoana Maria da Conceição, com sua pequena estatura e boa lucidez, declara que nunca viu nada para assustá-la e que só teme os castigos de Deus. Ao longo de um século de existência não aprendeu a ler, mas sua memória é prodigiosa. Tem nove filhos, cerca de 60 netos, aproximadamente 80 bisnetos, além de 20 tetranetos. “Fui criada na cozinha dos outros, mas estou aqui, em pé”, diz a anciã potiguara, reconhecida como “braba” por Iracy, uma de suas netas. Sua mãe, Maria Vitorina da Conceição, sustentou os filhos raspando mandioca nas aldeias. Dalí obtinha a farinha e o dinheiro para complementar a alimentação de todos.

Seu pai, o índio Joaquim de Souza, líder da aldeia Estiva Velha, morreu quando Joana era pequenina. Mas, como viver 100 anos é um privilégio de poucos, ela lembra algumas cenas de sua vida. O casamento foi assim: ela tinha uns 20 anos quando viu, pela primeira vez, o adolescente ameríndio Antonio Marcolino dos Santos. Ele indagou de Joana se ela o aceitava em casamento. Obtido o sim, o noivo foi falar com a mãe da jovem, que imediatamente autorizou a um dos filhos vender o cavalo que Joana criava, para comprar o enxoval. A resposta do rapaz foi lacônica: “mãe, eu não vou vender nada porque roubei uma moça e também preciso de dinheiro pra casar”.

Suas considerações sobre a vida de hoje são normais: atualmente morre menos gente do que antes, principalmente as mulheres de parto; o carro, os aviões e o celular facilitam tudo. Não lembra o nome da moeda quando era criança. Diz apenas que as cédulas eram grandes e de papel. Certa vez assustou-se ao ver uma baleia encalhada na Praia do Tambá. Como já estava morta, os índios a retalharam e aproveitaram alguma coisa. Admira a imagem em madeira de lei de São Miguel Guerreiro, patrono dos potiguaras. Guarda uma respeitosa saudação do passado: quando apresentada a estranhos responde com um “muito prazer, sua criada”.

2.884 pessoas sob o seu comando Cal (centro) se destaca como a segunda mulher a ser eleita cacique na Paraíba

Seu nome é Claudeci da Silva Braz. Mas, na antiga Vila Regina, distrito de Rio Tinto, a 52Km da capital, esta cacique é conhecida por Cal. Na última sexta-feira, ela comemorava os 35 anos de demarcação das terras potiguaras. O trecho onde mora foi batizado de “Retomada”, para marcar a luta dos remanescentes locais, que resultou, em 3 de março de 2007, no reconhecimento do Governo Federal em rebatizar este ex-feudo dos Lundgren com a denominação ancestral de Terra Indígena Potiguara de Monte-Mor. Cal se transformou aqui na cacique mais popular da história potiguara - a primeira foi Maria Hilária, da Aldeia Silva do Belém, que morreu em 2016, aos 93 anos -.

“A luta indígena ainda não terminou. Basta citar que ainda não saiu a regulamentação testamental das reservas já demarcadas”, esclarece. Mesmo assim, Cal já conseguiu resgatar o Palácio dos Lundgren, um casarão em estilo europeu, para o funcionamento de um Memorial Indígena. Para ela, a mulher está alcançando lugares antes nunca nem pensados. Vereadora bem votada em Rio Tinto, Cal tem, sob seu cacicato, a responsabilidade de liderar 573 famílias indígenas, num total de 2.884 pessoas. Sua aldeia é a mais completa da região: tem padaria, supermercado, restaurante e igrejas, além de a maioria das ruas calçadas. Em miúdos, ela tem apenas um filho, mas consegue ser “mãe” de mais de dois mil índios. De família longeva, orgulha-se em dizer que sua avó Luiza, morreu em fevereiro de 1985 com 107 anos.

Mãe Nancy 

Iracy Cassiano, a popular mãe Nancy, no primeiro ano de sua atuação como parteira, em 1970, fez 301 partos. Descendente de uma linhagem de caciques, ela faz parte da grande família indígena com sobrenome Gomes-Santana-Cassiano. Em cada aldeia do Litoral Norte é possível encontrar vários representantes desse clã. Com votos de índios e não índios, na década de 1990 foi eleita prefeita de Baía da Traição. O cacique geral Manoel Santana, um dos líderes potiguaras que conseguiu de Getúlio Vargas o reconhecimento de índios para os remanescentes locais, era seu tio. Também é prima de outro saudoso cacique, Daniel Santana, pai de Marcos Santana, prefeito duas vezes de Baía da Traição.

Irenildo, filho de Nancy, é o atual chefe do Posto da Funai em Baía da Traição, com jurisdição para todo o Litoral Norte. Nancy, aos 73 anos, confessa sua desilusão com a política. Principalmente com a política indigenista, que riscou do mapa da Funai diversos homens e mulheres por não reconhecê-los como índios. “Como é que a pessoa é índio a vida inteira e depois, sem nenhuma prova em contrário, a Funai determina que aquele índio deixou de ser?” Esta é uma indagação que, segundo ela, ninguém até agora respondeu. Nossa luta vai continuar, através das novas lideranças que estão surgindo”, opina.