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SEM CASA

JP tem mais de 400 pessoas nas ruas

publicado: 26/08/2024 11h00, última modificação: 26/08/2024 11h00
População é formada, em sua maioria, por homens com 30 a 49 anos, geralmente usuários de álcool e outras drogas
pessoa em condição de rua  © roberto guedes (6).JPG

Acesso a alimentação, higiene e direitos são apenas algumas das dificuldades que a população em situação de rua enfrenta | Fotos:Roberto Guedes

por Samantha Pimentel*

“A rua tira o ânimo de viver!”, diz um homem em situação de rua, usuário do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop), em João Pessoa. Aos 47 anos, ele conta que chegou à situação de rua por causa da dependência de crack. “Eu trabalhava. Eu vivia uma vida estabelecida, fui casado por 25 anos, tenho uma filha de nove anos, mas aí eu conheci o crack. Passei por clínica de reabilitação várias vezes, mas, quando saía, voltava a usar. Então, achei melhor me divorciar dela e dizer a minha filha que ia sair de casa para poder trabalhar”, relata.

Na Paraíba, segundo o Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), plataforma gerida pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), existem 824 pessoas em situação de rua. Os dados, que têm como base as informações do Cadastro Único (CadÚnico) de julho de 2023, apontam, ainda, que na capital paraibana existem 403 pessoas nessa situação. A maioria é formada por homens (84,37%), na faixa etária entre 30 e 49 anos (55,33%).

Os motivos que os levam a essa condição costumam ser, sobretudo, conflitos familiares, uso de drogas e desemprego. É o caso desse usuário do Centro Pop, que não quis se identificar. Em seu relato, ele também conta que passou por várias cidades, sofreu muito, e que o melhor acolhimento que encontrou foi na capital paraibana, onde vem conseguindo deixar o vício. “Sofri demais. Muitas vezes, eu dormi com fome. Mas decidi sair disso. Vai fazer três meses não uso mais o crack. Esse projeto que me acolheu me fortaleceu muito, eu tive uma assistência especial”, afirmou.

Hoje, ele dorme em um prédio ocupado por pessoas sem moradia, mas sonha em voltar a trabalhar, retomar a sua vida e reencontrar a filha. Ele mantém contato com a menina — como também com a ex-esposa —, mas elas não sabem da sua condição nem de todas as dificuldades por que já passou. “Não conto para não preocupar”, confidencia. Ele se mostra animado, ao dizer que vai iniciar um curso de gastronomia. “Quero voltar a trabalhar em cozinha, atividade que eu desempenhava antes”, acrescenta.

Drogas

As drogas também levaram outro usuário do Centro Pop, Marcos Fagner Santos, à situação de rua. Ele conta que começou a usar álcool e depois experimentou maconha. Com o tempo, foi surgindo a curiosidade de conhecer outras drogas, até chegar ao crack. Com isso, vieram os conflitos familiares, além de outros problemas. “Alguns anos atrás, eu passei a roubar, para sustentar o meu vício. A partir daí, passei por prisões, conheci essa realidade, e a minha vida foi sendo devastada. Aguentei as consequências. Hoje, eu vivo em condições de regime condicional, mas tenho o grande sonho de deixar de usar essa droga. É uma desgraça. Eu não aconselho ninguém a passar pelo que eu passei. Vi muitos morrendo. Se eu fosse falar da destruição que essa droga causa, o dia todo ainda era pouco”, lamenta.

Marcos relata ainda que, devido à situação de dependente do crack, ele não pôde cumprir o seu papel de pai. “Hoje com 13 anos, essa criança não me reconhece como pai, foi criada pelo avô”, diz. Mas ele também confidencia que está retomando os vínculos familiares e que faz “bicos” na construção civil ou em qualquer outra atividade que oferecer alguma oportunidade. No entanto o seu grande desejo é voltar a dar aulas de capoeira. “Na regra de pobre, eu tive infância. E com o pouco de inteligência que Deus me deu, com 16 anos eu me tornei professor de dança. Sou dançarino, sou capoeirista e também me tornei professor de capoeira. Sonho em voltar a dar aulas. Tenho contato com algumas pessoas, ainda. Se eu estiver passando, tiver uma roda, eu entro, caio para dentro na hora”, afirma.

Políticas públicas mitigam problema social

Para atender as pessoas em situação de rua, algumas políticas públicas vêm sendo executadas em João Pessoa, no intuito de suprir demandas de acesso a direitos essenciais, como saúde e alimentação, além de buscar meios para que elas possam superar essa condição e sair das ruas. De acordo com a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de João Pessoa (Sedhuc-JP), a capital paraibana conta com o Serviço Especializado de Abordagem Social (Ruartes), um Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop) — que também recebe investimentos do Governo Federal —, e três casas de acolhimento, com capacidade para 35 pessoas, além de uma casa de passagem para idosos, apta a receber até 20 indivíduos.

Por meio do Ruartes, é feita a abordagem social nas ruas e o encaminhamento para as demais políticas públicas — ou mesmo para a reintegração familiar, nos casos em que isso é possível. As ações são realizadas em articulação com outros serviços de saúde, educação e assistência social. Além dessas ações, o Centro Pop realiza, diariamente, atendimentos para as pessoas em situação de rua, com café da manhã, almoço, lanche, espaço para descanso, banho, lavagem dos pertences e acompanhamento técnico.

Segundo a coordenadora do Centro Pop, Maria do Amparo Santos Machado, o espaço realiza cerca de 150 atendimentos diários. “Eles chegam aqui às 7h, para tomar banho. Às 8h, a gente serve o café da manhã. Depois disso, alguns repousam, pois temos 10 camas para isso. Na rua, eles não dormem, apenas passam a noite. Também temos um tanque, na parte de trás, onde eles lavam a roupa e ficam esperando secar”, conta.

No local, ainda de acordo com ela, também é servido almoço — são 120 refeições. No mesmo ambiente, a equipe faz o atendimento das pessoas, para saber quais são as demandas — por exemplo, retirada de documentos, cartão do SUS, falar com a família ou atendimento de saúde. Ela ressaltou que o Centro atende pessoas que vêm de todas as partes da cidade, um público bastante rotativo, pois, muitas vezes, as pessoas em situação de rua vão para outros municípios ou mesmo outros estados. “A maioria é usuária de álcool e de outras drogas. Outros, ficam nessa situação por causa de conflitos familiares e de problemas com relacionamentos afetivos. E tem ainda a pobreza, a falta de emprego”, contou Maria.

A coordenadora contou que o espaço também está com uma parceria com o Tribunal Regional do Trabalho (TRT), por meio da qual cerca de 20 pessoas estão fazendo cursos de preparação para o mercado de trabalho. “Depois disso, elas podem ser encaminhadas para um emprego”, comemorou. Outras ações, como exibições de filmes e uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA), também vêm sendo desenvolvidas no Centro Pop.

Marquises são pontos muito procurados por quem vive na rua

População LGBT também tem acolhida

Parte da população em situação de rua é formada por pessoas do universo LGBT, sobretudo, pessoas trans, que não encontraram apoio da família. Por meio de ações do Governo da Paraíba, João Pessoa também sedia a Casa de Acolhida LGBTQIAPNb+ da Paraíba Cristiana Soares de Farias (Cris Nagô), que é o primeiro equipamento de acolhimento do Brasil para essa população, totalmente financiado com recursos públicos, o que representa um investimento de R$ 300 mil. O espaço atende a um público na faixa etária dos 18 aos 59 anos, que vive em situação de rua,  abandono familiar ou em situação de violência intrafamiliar e doméstica, sem risco iminente de morte.

A Casa Cris Nagô integra as ações da Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana (Semdh-PB). Desde a sua criação, em 2022, já realizou o acolhimento de 71 pessoas, por meio de um serviço que conta com uma equipe técnica formada por profissionais de diversas áreas: serviço social, psicologia, pedagogia, jurídico, enfermagem e educação social. Essa equipe realiza o acolhimento depois da triagem feita pelos Espaços LGBTQIAPNb+ Pedro Alves de Souza (João Pessoa) e Luciano Bezerra (Campina Grande).

Atualmente, o espaço está atendendo 20 pessoas. “Nesse processo, é aberto o prontuário e realizado o Plano Individual de Atendimento, no qual é possível identificar as primeiras demandas dessas pessoas e começar a traçar um plano de vida”, explica Laura Brasil, gerente-executiva de direitos sexuais e LGBTQIAPNb+ da Semdh-PB.

Arquidiocese

A Igreja Católica, por meio de serviços pastorais, também realiza ações voltadas à população em situação de rua. De acordo com Zil Bezerra, coordenador da Pastoral da Solidariedade — ligada à Arquidiocese da Paraíba —, o grupo distribui comida para um grupo de 300 a 400 pessoas, duas vezes na semana. “Somos uma equipe do Encontro de Casais com Cristo. Eu faço as compras e levo até a cozinha, onde preparamos a comida. Geralmente, a gente serve no Aratu, em Jacarapé e na Morada Nova”, disse.

Além do grupo que ele integra, há outros, também ligados à Arquidiocese, aos quais ele ajuda na articulação dos dias, horários e locais de atuação. Conforme Zil, todos os dias, um grupo ligado a alguma paróquia de João Pessoa serve refeições às pessoas nas ruas, em algum local do município, seja nas áreas centrais, seja em comunidades periféricas, onde a população se encontra em situação de vulnerabilidade.

“A gente distribui quentinha, sopa, suco de fruta, pão, cachorro-quente, pão com carne moída...”, elencou. Ele disse ainda que a distribuição de refeições se mantém com as contribuições dos próprios integrantes da Pastoral, além da colaboração de fiéis da igreja e também de comerciantes, que doam alimentos.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 25 de agosto de 2024.