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Por Mozart Vergetti de Menezes
A União surgiu em uma quinta-feira, 2 de fevereiro de 1893, expressando no seu editorial de forma concisa e sem titubeios aquilo que projetava ser: somos uma folha política, um jornal de partido que apresentamos hoje ao público. Abraçara, para tanto, as causas do Partido Republicano e pretendia, como o seu representante na Paraíba, difundir, dali em diante, os valores que consubstanciassem a ordem e o progresso da recém-criada Federação Brasileira, além da voz oficial da administração, como correspondente e divulgador dos atos do poder executivo.
Em formato tabloide, contendo quatro páginas, A União, cujo título, encimado em caixa alta, encontrava-se no topo da primeira folha, dividia, nesta e nas duas folhas seguintes, quatro linhas verticais, preenchidas com os textos. A última folha, fechando a encadernação, estava exclusivamente destinada para os anunciantes estamparem suas propagandas. Os textos, como disse, alinhados verticalmente, são separados por títulos em negrito, num total de 14 assuntos. Tais assuntos, contudo, o que nos parece óbvio, tinham seu grau de importância relacionada à página, se primeira, segunda ou terceira, e ao campo que deveria ocupar nesta mesma página.
Neste capítulo, discutimos algumas notícias, pinçadas das páginas do primeiro número de A União, buscando contextualizá-las à luz de sua significação à época, ou seja, procuramos entender o reflexo do conjunto de sinais que mostrava, consciente ou inconscientemente, os desejos e anseios dos militantes republicanos da Paraíba que faziam este jornal. Desejos e anseios ainda muito primevos, mas que, no futuro, esperavam, sagrariam uma outra sociedade, limpa da miséria e da ignorância, regida pela razão, pela ciência e pela ordem dos reformadores e da polícia.
Como um jornal do e de governo, e principalmente pelo momento de júbilo da sua criação, mais de dois terços dos assuntos tratados, além do editorial, já analisado em outro capítulo, referem-se a panegíricos ao Partido Republicano da Paraíba, ao governador e a atos de nomeação do executivo. Os aplausos à atuação dos órgãos e pessoas do e de poder são vivamente divulgados e festejados, por irem ao encontro das novas exigências do Estado Republicano que quebrava, assim acreditava, com uma longa tradição de indisciplina na gestão pública.
Neste sentido, logo no centro da primeira página, vê-se uma nota de desagravo ao Illustre Presidente, dr. Álvaro Machado, intitulada “Censura injusta”, por ter sido ele ofendido pela “Redação do ‘Estado da Parahyba’ ... pelo facto de haver ordenado o pagamento relativo ao mez de janeiro ao funcionalismo”.
Mesmo que o fato não seja de todo esclarecido, subtende-se que o motivo da hostilidade ao presidente era que o exercício findo, do ano de 1892, havia deixado algumas contas a pagar e os credores, obviamente, insatisfeitos. Daí terem esses mesmos credores encontrado na redação do Estado da Parahyba, o espaço para atacar a administração principiante por ter invertido a lógica de prioridade no uso dos recursos públicos. Em reação a esta provocação, a interessante nota de A União procura defender e elogiar o ato do presidente Álvaro Machado, tendo como juízo três argumentos de fundo republicano: primeiro, quanto à necessidade de não estancar os serviços de assistência à população, pois...
Mui acertado esse alvitre, desde que consideramos o nosso Estado, os públicos serviços estão prestes a serem paralisados de accordo com os novos moldes estatuídos nas leis ultimamente decretadas...
Segundo, pela necessária aplicação responsável das receitas:
Em taes circunstancias comprehende-se que não se deve distrahir de receitas voltadas para ocorrer as despesas do exercício vigente, verba de que não cogitou a lei do orçamento para pagamento das despesas do exercício transacto”. [E o que estivesse faltando do exercício findo,] “tem que ser satisfeito com recursos do auxílio prestado a este Estado pelo governo da União...
E, em terceiro, por garantir o direito aos assalariados de receberem seus ordenados e, de quebra, mantê-los longe dos agentes financeiros e creditícios, naquela época, representados pelos agiotas:
Procedimento contrario importaria a inversão das ditas normas administrativas, senão tambem a proteção aos agiotas, que continuarião a descontar ordenados com grande abatimento, em detrimento da classe dos empregados publicos, em favor dos quaes a nenhuma vantagem adviria.
Mas os elogios da primeira edição de A União não se restringiam à aplicação das boas ditas normas administrativas ou ao respeito que o novo governo deveria ter na gestão dos gastos da receita. Também na primeira página, o império da lei é prestigiado e a ação da polícia enaltecida quando da resolução de uma desordem entre populares em um termo da capital. O lugar, então conhecido como Cruz do Peixe, refere-se hoje à área que dá início à Avenida Epitácio Pessoa, mais precisamente nas imediações do Museu da Energia. Situado nos limites da Capital, zona periférica, ali deveria residir boa parte da população pobre da cidade. Os atores da trama, os ditos desordeiros, sem nenhum motivo aparente, além da insensatez ou da falta de juízo, em uma palavra, da loucura, protagonizaram o theatro de horrores. Embriagados, enquanto travavam uma luta corporal usando facas e cacetes, foram surpreendidos pela chegada da máquina policial que os reprimiu, rendendo alguns, apreendendo facas e prendendo outros. Sob o título Conflito, a notícia está colocada logo abaixo da nota de desagravo ao presidente:
Na tarde de 29 do mez de janeiro findo, no lugar Cruz do Peixe do termo dessa capital, alguns indivíduos embriagados travaram uma lucta á cacete e faca, sendo necessário, para evitar suas consequências, que o illustre dr. Antonio Ferreira Balthar, digno chefe da policia deste Estado fizesse seguir para o theatro do conflito uma força de dose praças de polícia. Foram presos diversos desordeiros e apprehendidas algumas facas.
Continue a zelosa autoridade a prestar seus alevantados serviços que terá os applausos da população sensata desta cidade.
Como se vê, o novo regime surgia, nas páginas de A União, como o verdugo implacável, atuando sobre uma sociedade ainda bruta, e que necessitava ser corrigida nos seus vícios. Correção que parecia transformar, quase que imediatamente, coisas e pessoas horrendas e atrasadas na maior expressão de beleza e modernidade. Tais mudanças, contudo, não eram apenas vistas como um castigo, o remédio amargo que purgaria a cidade violenta, desordenada, imunda e retrógrada, ou velhas tradições de injustiças contra o funcionalismo; elas eram também percebidas nas celebrações festivas, onde o humano e a urbe desfilavam como modelo daquilo que o mundo moderno e civilizado queria ser e parecer ser.
Na imprensa da época, de um modo geral, a crônica social fora o principal estilo de divulgação desse mundo bonito, limpo, charmoso e, por que não dizer, otimista. Penetrar a noite artificialmente iluminada, caminhar entre ruas calçadas com novos equipamentos urbanos ou enaltecer as qualidades do comportamento à etiqueta nas reuniões sociais, ornadas com taças, drinks, brindes, enfim, tudo aquilo que poderia fazer o espírito transbordar em felicidade, embriagar-se, rir, divertir-se. Uma notícia de terceira página, ao comentar sobre a realização da Festa de São Sebastião, na cidade de Pilar, cujo destaque foi a inauguração da iluminação da principal rua desta Villa passou a misturar, no brilho festivo, a visita de um convidado ilustre:
Na véspera tivemos a honra de sermos visitado pelo ilustre sr. coronel Claudio do Amaral Savagel, digno commandante do 27 batalhão que, ao chegar aqui o trem, desembarcou acompanhado do nosso distinto amigo Chamabrini, sendo recebidos pelo digno presidente da intendência, commendador Joaquim P. Napoleão...
Uma comitiva, então, passa a percorrer a Vila de Pilar, sendo o passeio e as observações do coronel registrados passo a passo. Elogios sobre as obras que o novo tempo republicano demandava foram exaltadas, o estado das ruas, por exemplo, que antes
tinhão um aspecto triste, eram cheias de buracos, sem calçadas e sujas, hoje a esforços do illustre presidente que pina em aplicar bem o dinheiro dos munícipes em melhoramentos e materiais, as casas estão caiadas, becos tomados por ponteiras e arcos, as ruas calçadas e cheias de arvoredos, de modo que deixão uma agradável impressão a quem nelas transitam.
O coronel Amaral ainda foi homenageado com uma soirée, onde se esmerou em ser agradável a vista do bello sexo. No dia seguinte, após ser-lhe servido um lunch ao som de musica e espocar de foguetes e brindes, foram os amigos deixá-lo na estação para retornar à capital.
Ora, é difícil duvidar que esta cobertura da Festa de São Sebastião no plano mental não estivesse cheia de sonhos que buscavam vestir a província da Paraíba de uma aura de paz e desenvolvimento muito característico da Belle Époque (movimento de inovações tecnológicas que, na Europa, antes da Primeira Guerra, inspiraram novas percepções da realidade). A valorização do urbano com ruas agradáveis, o transporte rápido com o trem favorecendo a comunicação, e o divertimento, à noite, são exemplos disso. Mas a realidade também batia à porta e, contraditoriamente, frustrava um pouco o glamour na criação de A União, afinal, mesmo que orquestrados os planos há pelo menos um ano, o jornal modestamente reconhecia que ainda não dispunha, na data do seu lançamento, de um serviço telegráfico próprio, coisa que pretendia fazer em breve tempo:
Para preencher uma lacuna que se nota na imprensa desta capital, estamos tratando de organizar um serviço telephafico para a nossa folha, o que esperamos brevemente realizar.
Por enquanto iremos transcrevendo as communicações telegraphicas mais importantes publicadas pelo ‘Jornal do Recife’ e algumas oficiais que a gentileza do ilustre dr. Alvaro Machado, digno presidente deste estado, nos facultar.
Além de não ser um demérito a falta de um telégrafo, afinal a lacuna se notava em toda a imprensa local, o serviço telegráfico era algo novo e muito caro, pois só em 1875, dezoito anos antes, os cabos da Repartição Geral dos Telégrafos (RGT) interligaram a capital da Paraíba ao Rio de Janeiro [1].
Os custos para expansão do sistema eram altíssimos. Os cabos, se aéreos ou submarinos, postes, ferramentas, pessoal, municio de boca para os trabalhadores e tecnologia importada, principalmente britânica, encareciam o empreendimento a ponto de torná-lo inviável financeiramente, tanto ao capital privado como público.
No Brasil do segundo império, a mobilização em torno da instalação dos telégrafos só começou realmente a tomar corpo em dois momentos singulares e estimulados por pressões externas. Primeiro, em meados do século XIX, quando interesses políticos internacionais exigiram a extinção do tráfico de escravos e definiu-se a instalação desse mecanismo como auxiliar no combate à escravidão, donde resultou a criação da RGT, em 1855, mas a ligação não fora além do Rio de Janeiro a Petrópolis. O segundo momento deu-se em 1865, durante a guerra do Paraguai, quando o governo questionou a necessidade de se comunicar mais rapidamente com o front. Passado, então, o alvoroço desses momentos, retomava-se a velha rotina da conversação missivista.
Na verdade, a extensão das linhas em direção ao Norte só se tornou possível quando a Associação Comercial de Pernambuco, na década de sessenta, alocou um empréstimo da ordem de setecentos mil contos de réis na obra, que seria pago pelas províncias de Espírito Santo, Bahia, Sergipe e Alagoas, na medida em que suas capitais fossem incorporadas ao sistema. Todavia, apesar de não dispormos de informações do formato de financiamento para integração da Paraíba ao sistema telegráfico e das outras províncias mais ao acima (bastando aqui registrar a inauguração das estações de Fortaleza, em fevereiro de 1884, e São Luís, em dezembro do mesmo ano), é crível atribuir tal iniciativa ao capital estatal, inclusive por constatar que o controle do serviço, na Paraíba, estava sob a batuta do ilustre dr. Alvaro Machado, digno presidente deste estado, ou seja, sob a autoridade do poder constituído e não nas mãos da iniciativa privada.
De um modo geral, todas as notícias aqui discutidas destacam questões locais, cujos aspectos de fundo, claramente revelam a tonalidade política e/ou desejos do grupo que estava à frente de A União, ou seja, o fortalecimento do poder recém-constituído e a consolidação da credibilidade do jornal, inclusive com o humilde reconhecimento da carência técnica. Porém, há uma notícia aparentemente desprovida de sentido, colocada no penúltimo campo da terceira e última página do jornal, intitulada ‘Uma Flôr Eterna’. A notícia, que mescla a cena entre verdade e lenda, explora a incorporação a um museu de história natural de uma planta cheia de significados:
Um dos Museus de história natural da Allemanhã acaba de ser enriquecido com uma planta raríssima desconhecida até agora na Europa e que procede do alto Egypto. O seu primitivo possuidor foi o illustre sábio viajante Dr. Deck.
Onde Nasce essa flôr ignora-se. Nenhum dos tratados que até hoje se tem escripto sobre botânica a menciona. Dr. Deck denominou-a ‘Flôr da Ressurreição’.
Não se parece com nenhuma outra planta e ignora-se a que família pertence. Typo único no mundo, flôr isolada na terra e na sciencia, não tem antepassado na história, nem descendentes. Fallando-se dessa flôr maravilhosa sae-se da história natural para entrar no domínio da lenda.
Quando Deck percorria o alto Egypto em procura das celebres minas esmeraldas exploradas na antiguidade, encontrou um arabe velho a quem salvou a vida. O arabe era pobre e no entanto pagou os cuidados do doutor com um thesouro que nenhum dos reis na terra lhe podia offerecer.
Esse thesouro foi uma planta que, no dizer do arabe, tinha sido descoberta no deserto sobre um sepulcro antigo no qual jazia uma sacerdotisa egypcia.
O arabe acrescentava que esta planta phantastica encerra um encanto desconhecido. O doutor quando ouvio tão pomposo elogio dessa planta meio secca que, por todo adorno contentava sobre o desmaiado hastil dous botões abrasados pelo sol e amarellecidos pelo tempo, rio-se.
Então o arabe pegou algumas gotas d’agua e orvalhou a planta. Os attonitos olhos do viajante contemplaram um prodigio: a planta estremeceu, agitou-se no hastil, os botões incharam e entreabriram-se e a flôr desenvolveu as suas petalas diaphanas e soberbas, cheias de elegancia e de frescura. Dir-se-ia que era uma margarita phantastica colhida n’um jardim encantado. Pouco a pouco desenvolveu completamente a sua corola de cores iriadas e de extraordinaria delicadeza, descobrindo a formosa ressuscitada o seu seio remoçado no qual dormiam as antigas sementes que a flôr guardava com zeloso cuidado ha tantos séculos e que são eternamente esteries.
Depois dessa curta ressureição a flor desmaia, enlanguece e declina; curva-se o hastil, as petulas fecham-se sobre se mesmas e toda a planta agoniza e morre, ficando como um unico signal de vida os dous botõezitos amarelos e queimados pelo sol de ha cinco ou seis mil annos.
Admirado, o doutor Deck levou a planta e renovou mais de cem vezes [palavra ilegível] do arabe e, quando morreu. [palavra ilegível] seu discipulo e amigo o sabio Zamis.
Uma das flores da mysteriosa planta egypcia foi dada de presente a Humboldt, que tambem a ressuscitou muitas vezes sem nunca poder penetrar o segredo que a envolve. Em cada uma das operações Humboldt repetia com a tristeza de um genio importante: não conheço nada na natureza que se pareça com esta planta.
O eminente autor da ‘Alma das Plantas’ Arnold Boscowitz, diz que os antigo conheceram essa grande maravilhosa do mundo vegetal e está provado que na edade média tambem havia della qualquer recordação porque sobre o sepulcro dos cavaleiros de Malta encontra-se gravada como emblema do amor eterno, uma flôr mystica que deve ser a ‘flor da ressureição’.
Quem poderá descobrir o mysterio desta planta que renasce depois de milhares de anos para dizer ao mundo admirado: Vêde como eu era no tempo dos Pharaós.
Nesta época, o mapa mundi possuía seus pontos brancos, espaços desconhecidos que intrigava e estimulava uma leva de homens a se aventurarem na busca do extraordinário, da conquista de algo que pudesse mudar o curso da história. É interessante ver como o maravilhoso coexiste com a ciência ainda nos fins do século XIX. Desconhecida, a planta que nenhum tratado de botânica a menciona, que não tem antepassado na história, que está completamente ignorada na terra e na ciência, que jazia e renascia indefinidamente só poderia pertencer, como sugere a notícia, ao domínio da lenda. Fora então recolhida ao museu de história natural, onde deveria ser individualizada, observada, classificada e hierarquizada para que lhe fosse atribuído um gênero e uma determinada espécie.
Mas, qual o motivo da notícia, mera necessidade de fechar a lacuna da página ou dar vazão a uma curiosidade mítica ou científica? Ora, se o enredo dos assuntos tratados nesta primeira edição de A União se dirigirem, como já falamos diversas vezes, à cena política, podemos coerentemente pensar que o inconsciente dos redatores estivesse, antes de qualquer outra coisa, ligado à escolha disto. Daí pensarmos na possibilidade da narrativa sobre a misteriosa flor estar associada inconscientemente a necessidade que cada um daqueles homens tinha em administrar as suas relações com os outros homens em sociedade, em imaginar uma forma de melhor governá-los, de estudá-los, de cuidá-los, de controlá-los, de resgatá-los da ignorância. Talvez tal desejo equiparar-se-ia àquilo que Michel Foucault chamou do poder de governamentalidade[2]. Permitam-nos então uma pequena digressão.
Para Foucault na história das artes de governar, a governamentalidade desenvolveu-se a partir do século XVI e foi responsável por instituir o governo dos homens através do conjunto populacional.
Ainda no século XVI, o exercício do poder em relação às coisas ou aos aspectos referentes à materialidade da vida estava relacionado à figura do Príncipe. O príncipe, além de deter o direito de morte sobre seus súditos, detinha também os direitos de exploração do território, dos moinhos, dos rios, e das propriedades dos campos. Passado o tempo, contudo, já no século XVIII, essa relação de poder direta entre o rei e os súditos se complexifica, no momento em que aparece a ênfase no indivíduo e nos domínios particulares. O controle agora é também exercido no interior da família, da fábrica, dos hospitais e do exército. Tudo contribui para um ambiente de disciplina que aponta para a criação de indivíduos dóceis e produtivos. A governamentalidade, então, nada mais é senão o entrelaçamento desses dois momentos, o qual garantiria a percepção do conjunto dos governados e não mais nas relações diretas de poder, quer sobre o súdito, quer sobre o individuo.
O dispositivo do poder agora, através da governamentalidade, recai sobre a população, sobre o conjunto dos governados. O estudo demográfico apresenta regularidades que possibilitam uma regulação de conjunto, e que permitem ao Estado agir a partir de esferas como a saúde, a economia e a educação.
Mas a governamentalidade não deve ser entendida apenas como o mecanismo que viria melhorar a sorte das populações, aumentar suas riquezas, sua saúde e, por conseguinte, sua duração de vida. Ela também é uma técnica de governo que serve para o controle dos indivíduos, um mecanismo de segurança a serviço da ordem e do status quo. É o instrumento que o governo vai utilizar para obter esses fins e será essencialmente sobre a população, agindo diretamente sobre ela por meio de campanhas, ou indiretamente, por meio de técnicas que vão permitir, por exemplo, estimular, sem que as pessoas percebam muito, a taxa de natalidade, ou dirigindo nesta ou naquela região, para determinada atividade, os fluxos de população.
São as táticas de governo que, através da governamentalidade, permitem definir o que é do âmbito do Estado e o que não é, o que é público e o que é privado, o que é estatal e o que é não-estatal. O Estado em sua sobrevivência e o Estado em seus limites, só deve ser compreendido a partir das táticas gerais da governamentalidade.
Desta forma, o Estado tem a seu encargo uma sociedade civil, e é a gestão dessa mesma sociedade civil que o Estado deve assegurar. Para tanto, deve o Estado conhecer a sua população para lhe aplicar os dispositivos na medida certa; não conhecê-la e ignorá-la, levaria à aniquilação do próprio Estado. Portanto, tal como a Flor da Ressurreição, que até então se encontrava sem classificação e que, por isso mesmo, estaria no limbo da existência, mesmo que comprovada a sua materialidade, a população ignara, marginal e insensata, como era vista pelo novo regime republicano que se montava em fins do século XIX, teria também o seu lugar relegado à lenda e fora da história, até que se submetessem docilmente aos crivos taxionômicos dos dispositivos de poder.
A título de curiosidade, contudo, é bom esclarecer que, ao longo desses cento e vinte anos que nos separam da publicação dessa notícia, em algum momento, foi essa planta reconhecida cientificamente pelos botânicos e batizada com o nome de Selaginella lepidophylla. Sabemos hoje que ela é originária do deserto e que cresce no Oriente Médio e na América Central. Segundo o site AZARIUS
... estas plantas vivem em regiões desertas, crescendo e reproduzindo-se como qualquer outra planta, até o meio ambiente deixar de lhes favorecer uma existência saudável. Quando chega essa altura, as flores e as folhas secas caem e os galhos secos encolhem-se, formando uma bola. As plantas retiram as suas raízes do solo e permitem ao vento transportá-las pelo deserto, até chegarem novamente a um sítio húmido onde podem continuar a crescer e a propagarem-se. A bola volta a abrir-se totalmente e a soltar as suas sementes, que germinam. Assim que entram em contacto com água, as jovens plantas de aspecto seco começam rapidamente a florescer.
Pode dizer-se que estas plantas “sentem” o que fazem durante este processo, visto que não se mantêm necessariamente no primeiro sítio onde param, mas investigam o local para verificarem se é adequado ao crescimento. Ali podem ficar, e crescer, ou então mudam-se várias vezes[3].
Ora, mesmo que boa parte do maravilhoso tenha se perdido pela dessacralização da lenda que cercava à planta, a sua magia, contudo, ainda permanece. Tal e qual algumas populações humanas, essas plantas vivem como errantes, mudando-se várias vezes, caminhando e procurando novos sítios, investigando e verificando o local mais adequado para ficar e crescer como se não quisessem se submeter ao crivo da ordem, do poder, enfim, das determinações da ciência.
[1] As informações sobre a telegrafia no Brasil foram retirados do artigo de SILVA, Mauro Costa da. “A telegrafia elétrica no Brasil Império – ciência e política na expansão da comunicação. In: REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA / Sociedade Brasileira de História da Ciência. Vol. 4. nº 1. Jan/Jun. de 2011. Rio de Janeiro: SBHC, 2011. p. 49-65
[2] As reflexões sobre a governamentalidade foram tiradas do “A Governamentalidade, Curso do Collège de France, 1 de Janeiro de 1978” In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 7ª Edição. Rio de Janeiro; Edições Graal, 1978. p. 277-293.
[3] A informação encontra-se em: http://azarius.pt/lifestyle/fun_stuff/gadgets/rose_of_jericho/ No site AZARIUS. Acesso em 14 de dezembro de 12.