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A insurreição católica que travou o Nordeste no começo do Brasil

publicado: 25/08/2025 09h06, última modificação: 25/08/2025 09h06
Guerra contra os holandeses, que dominavam a economia açucareira no século 17, não teria passado de um calote
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A Batalha dos Guararapes, retratada por Victor Meirelles, foi crucial para a expulsão dos holandeses do território brasileiro | Foto: Victor Meirelles/Reprodução

por Ademilson José (Especial para A União)*

Como bem diz o historiador Eduardo Bueno, não se deve ler para decorar e fazer provas porque essas coisas (ainda) não vão cair no Enem. Como tantos outros elementos da nossa história, o movimento político-religioso que ocorreu de 1645 a 1654 e que ganhou o bonito nome de Insurreição Pernambucana, na verdade, não passou do primeiro e maior calote do nosso período colonial.

Mas quem põe o ponto dessa história nos “is” não é nenhum historiador contemporâneo e moderno. Como o assunto é Economia, quem aponta para essas correções é o velho economista paraibano de Pombal, Celso Furtado, no seu antigo e mais famoso livro Formação Econômica do Brasil. Tão antigo que a primeira edição é dos idos de 1959.

Ele corrige o seguinte: nossa história conta que a Insurreição Pernambucana foi uma revolta na qual colonos luso-brasileiros rebelaram-se contra o confisco de engenhos de açúcar; que a medida colocou a economia da região em crise e que isso estava gerando o maior empobrecimento da população. Como reforço religioso, as lideranças católicas da revolta também chamaram a tal insurreição de Guerra da Luz Divina, acusando de hereges os calvinistas do poder.

Ocorre que, na análise de Celso Furtado, por trás dessas querelas político-religiosas da Insurreição Pernambucana ou da Guerra da Luz Divina, o que havia mesmo era o seguinte: tentando se livrar do pagamento de vultosos empréstimos que haviam recebido (sobretudo) no fausto período de Maurício de Nassau (1637–1644), um bando de donos de engenhos percebeu que uma forma prática de sonegar seria expulsar os holandeses calvinistas de Pernambuco.

A revolta se espalhou. Já que tinham o português João Fernandes Vieira (um dos donos de engenho mais endividados) e o paraibano de Tibiri, André Vidal de Negreiros, como bons generais de guerra, esses donos de engenhos juntaram Felipe Camarão para puxar muitos indígenas e Henrique Dias para juntar muitos negros, e o Recife pegou fogo. Em nome de Deus e da restauração portuguesa, os calvinistas holandeses tiveram que esquecer os empréstimos e debandar.

Como a cana-de-açúcar foi o primeiro ciclo econômico (depois viriam o do Ouro e o do Café), aquele foi o primeiro calote praticado contra a economia nordestina, situação que levou os holandeses a, antes mesmo de sair, desviarem seus investimentos na economia do açúcar para outro lugar. Optaram, então, pelas Antilhas, que, em pouco mais de 10 anos, transformaram-se na potência que o Nordeste estava começando a ser, mas que estagnou.

“Menos de um decênio depois da expulsão dos holandeses, já operava nas Antilhas uma economia açucareira de consideráveis proporções”, resume Furtado, na página 35, com detalhes bem mais esclarecedores, que apresenta na página anterior: “No começo do século XVII, os holandeses controlavam praticamente todo o comércio dos países europeus realizado por mar. Distribuir o açúcar pela Europa sem a cooperação dos comerciantes holandeses era impraticável...”. 

Obra de Furtado mostra como a revolta acelerou a economia das Antilhas e a decadência nordestina | Foto: Divulgação/Companhia Editora Nacional

E continua Furtado: “Os holandeses de nenhuma maneira pretendiam renunciar à parte substancial que tinham nesse importante negócio, cujo êxito fora em boa parte obra sua. A luta pelo controle do açúcar torna-se, destarte, uma das razões de ser da guerra sem quartel que promovem os holandeses contra a Espanha. E um dos episódios dessa guerra foi a ocupação pelos batavos, durante um quarto de século, de grande parte da região produtora de açúcar no Brasil”.

Aqui, ele se refere à Espanha e não a Portugal porque, como se sabe, de 1580 a 1640, o Brasil não foi exatamente de Portugal. Foi da Espanha, que era a cabeça da chamada União Ibérica, período em que os lusitanos entraram em parafuso com a morte do seu rei quase santo, Dom Sebastião, ficando subordinados à Coroa Espanhola. Como inimigos da Espanha, os holandeses ocuparam o Nordeste brasileiro não para tomar todo o Brasil de Portugal, obrigatoriamente, mas para, aqui, fazer a Guerra do Açúcar com os espanhóis.

Decadência

Na avaliação do economista Celso Furtado, é provável que a decadência da economia açucareira do Nordeste no período colonial e as transformações da economia antilhana tivessem ocorrido muito mais lentamente, não fora a ação de um poderoso fator exógeno (fora do sistema), em fins da primeira metade do século 17.

Esse fator exógeno, diz ele, “foi a expulsão definitiva dos holandeses do Nordeste brasileiro. Senhores da técnica de produção e muito provavelmente aparelhados para a fabricação de equipamentos para a indústria açucareira, os holandeses se empenharam firmemente em criar fora do Brasil um importante núcleo produtor de açúcar. É tão favorável a situação que encontram nas Antilhas francesas e inglesas que preferem colaborar com os colonos dessas regiões a ocupar novas terras e instalar por conta própria a indústria”.

Pode acontecer de nosso economista maior se equivocar. Pode ser que outro entendido no assunto imponha alguma controvérsia. Nada demais. Ninguém é dono da verdade. Uma coisa, no entanto, é certa: depois daquele episódio, o Nordeste, que, na fase áurea de Nassau, foi o maior PIB das Américas (São Paulo e Nova York nem existiam), não foi mais exemplo em ciclo econômico nenhum. Por isso. Porque sua vez, ou a vez de sua arrancada, era o ciclo do açúcar, lá no começo de tudo, lá no período colonial.

Celso não mergulha na análise política — nem precisava —, mas, lendo detidamente a sua Formação Econômica do Brasil (cujo acesso é fácil, bastando recorrer à 32ª edição on-line da Companhia Editora Nacional), a gente acaba conhecendo mais o Brasil de hoje do que nas leituras desses economistas “modernos” e de modernas publicações.

Ao concluir os relatos de Furtado, qualquer leitor desavisado é capaz de perceber que o próprio Padre Antônio Viera estava certo demais quando sugeriu à Coroa Portuguesa que não brigasse com o “fogo amigo” holandês e deixasse com eles mesmos essa parte do Brasil. Tinham bem mais know-how em produção e já haviam iniciado, no Recife, um processo de invasão mais civilizada e com melhores resultados em pouco tempo de duração.

Portugal não ouviu os conselhos do seu maior sábio no período colonial, mas os resultados dessa história são comprovadores de que nosso maior economista também tem toda razão. Tanto que, no seu livro O Negócio do Brasil (1998), o historiador Evaldo Cabral de Mello fez as contas e mostrou que, ao invés de expulsos, os holandeses foram embora levando, em troca, 63 toneladas de ouro, fruto de um acordão.

Já do lado de cá, coincidência ou não, o que se viu, depois da vitória da tal Insurreição, foi seu principal líder e mais endividado dono de engenho, João Fernandes Vieira, ser premiado com o cargo de governador da Paraíba. Para a época, superou até o paraibano Vidal de Negreiros, que foi governar o Maranhão. E, como ainda não havia Congresso, não se instalou sequer uma CPI para averiguar a questão.

Mascastes em conflito

Mas Celso Furtado não fica no Brasil-holandês. Mostra que, por motivos parecidos, pouco mais de 50 anos depois, no começo do século seguinte, a história se repete. De 1710 a 1711, na esteira da mesma ganância da elite dos engenhos, veio a Guerra dos Mascates, conflito ocorrido no mesmo Pernambuco, envolvendo senhores proprietários rurais de Olinda versus comerciantes do Recife.

Não havia intenção de romper com a metrópole, mas, com seu porto e suas atividades comerciais, Recife via sua economia prosperar, enquanto Olinda, centro da produção açucareira, entrava em depressão. Detentores do poder, senhores de engenho de Olinda assistiam à sua influência despencar diante dos comerciantes do Recife, a quem passaram a tratar pejorativamente de mascates (ambulantes).

A disputa envolveu a elevação do Recife à condição de vila, com autonomia política em relação a Olinda. Isso desagradou demais os senhores de engenho e gerou, como principal consequência, a reafirmação do predomínio do capital mercantil sobre a produção colonial. Recife tornou-se sede administrativa da Capitania, consolidando, com isso, seu poder político e econômico na região.

Muitos olindenses foram presos e tiveram suas propriedades confiscadas com intervenção da Coroa Portuguesa. O interventor, Félix José Machado de Mendonça, conseguiu apaziguar os ânimos, mas, depois da questionável insurreição e daquela briga de produtor com vendedor, a economia do Nordeste nunca mais prosperou.

Hábito de colonizador. Sem ganância e com educação, a passos de tartaruga, a longo prazo, os indígenas teriam feito melhor. Coisas da “história portuguesa” do Brasil.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 24 de agosto de 2025.