“Onze de outubro de 1930. Duas horas da tarde. Os comprimidos de oxicianureto de mercúrio se espalhavam sobre a cama. Pegou um entre os dedos e levou-o à boca. Mas não conseguiu engolir. A garganta parecia fechada. Precisou mastigar pedaços de banana. As pílulas desciam, quentes como brasa: uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete… Impossível engolir mais. No frasco, restaram oito”. Assim a escritora pernambucana Ana Maria César, filha de paraibanos, recria o momento decisivo em que Anayde Beiriz (1905–1930) decide dar cabo à própria vida no livro Três homens chamados João (Cepe, 2020).
Uma parte dos detalhes que tornam o relato vivo foi recolhida no inquérito policial que investigou a morte da professora, poeta e escritora paraibana, envolvida nos acontecimentos desencadeados com o assassinato de João Pessoa pelo seu noivo, o advogado João Dantas, na Confeitaria Glória, em Recife (PE). Ana Maria vai além da descrição, e como poeta e escritora, mergulha nos sentimentos da única mulher “vitimada” pela tragédia de 1930, como prefere a autora, para propor uma narrativa que pode ser sentida.
Anayde, que já era apontada nas ruas da capital paraibana como a “noiva do bandido”, decidiu seguir para Recife quando a casa de sua família foi sitiada pelos liberais. Desejava também ver seu amado. Ana Maria César reconstitui, em um dos capítulos de sua obra, a peregrinação da jovem de 25 anos pelas casas de parentes e conhecidos na capital pernambucana. A morte de João Dantas — no dia 6 de outubro — foi o último golpe. “Ela não suportou. A vida dela, na verdade, estava como um círculo fechado. Ela não tinha para onde ir. Ela não via o que fazer”, explica a autora.
Data daquele mesmo dia 11, a carta de despedida de Anayde para sua “mãezinha” e um bilhete para a irmã Zezita. No dia seguinte, a jovem teria sido levada ao Asilo Bom Pastor, onde foi recebida pela madre superiora com os primeiros sintomas. Somente depois confessou ter tomado veneno, fato que foi declarado também ao chefe de polícia. “Os motivos que a isso me impelem são de natureza íntima, só a mim dizem respeito, razão por que acho desnecessário declará-los aqui”, escreveu a própria Anayde. A agonia durou mais 11 dias. “Aos poucos, tudo ao redor foi-se apagando. Não havia mais desejos, nem sonhos, nem lembranças. Eram 13 horas e 45 minutos de 22 de outubro de 1930”: assim, encerra-se o capítulo do livro.
- Ostentando a sua própria bandeira, Anayde estava conquistando, por esforço próprio, os poucos espaços que se abriam; não foi encontrado nada que mostrasse que ela tinha uma relação direta com a disputa política na Paraíba e com a Revolução de 1930
Resgatar da memória
Para superar a visão que se tem de Anayde Beiriz, restrita à condição de namorada do assassino do então presidente João Pessoa, ou ainda como mulher revolucionária, de atitudes avançadas e à frente de seu tempo, a editora e produtora cultural Valeska Asfora, a autora da mais recente biografia sobre a personagem histórica, Anayde Beiriz — a última confidência (Editora A União), defende um novo olhar sobre a trajetória e a vida dessa paraibana.
“Anayde Beiriz teve sua própria história. Ela foi professora, poeta e escritora, especialmente de contos. Participava de movimentos literários e publicava em jornais fora do estado. Esse é o perfil dela”, afirma. Nas pesquisas que realizou para o seu livro, o que mais chamou atenção foi o fato de que não ter encontrado nada que mostrasse que ela tinha relação direta com a disputa política na Paraíba e com a Revolução de 1930.
Formada com destaque na Escola Normal da Paraíba, em 1922, Anayde Beiriz lecionou em uma escola vinculada à Colônia de Pescadores, da então vila de Cabedelo, a Colônia Z2, na qual, certamente por ser uma pessoa letrada, também exercia a função de secretária. Durante o dia, alfabetizava as crianças e à noite, os adultos. Valeska Asfora lembra que na época as mulheres só ensinavam em escolas ligadas às igrejas ou ao governo e, geralmente, para classes de meninas.
Da Anayde escritora, Asfora afirma ter se surpreendido com o fato de, a partir de 1921, encontrar publicações da jovem em jornais e revistas do Rio de Janeiro (RJ), Belém (PA) e Recife (PE). Isso foi possível porque ela fazia parte do movimento literário “Os Novos”, que procurava conciliar alguns aspectos do modernismo e do regionalismo.
“Ela e a poeta Britas Mota, de Manaus (AM), eram as únicas mulheres no Brasil que faziam parte desse movimento. E esse é um aspecto muito importante, porque até hoje a literatura ainda é um campo difícil e só mais recentemente uma quantidade maior de mulheres vem publicando em revistas e livros. Na década de 1920, ela já conseguia transpor essa barreira”, destaca Asfora. Ela afirma não ter encontrado nenhum artigo político de autoria de Anayde nos jornais da época, ainda que suspeite que a poeta tinha alguma posição política, sobretudo pela afinidade que mantinha com João Dantas.
Para a biógrafa, Anayde foi esquecida enquanto contista e mulher das letras e passou a ser identificada como aquela que se comportava de forma provocante, usando saia curta, batom vermelho e cabelo no estilo à la garçonne. Esses estereótipos estimularam, naquele período, o preconceito da sociedade local e depois foram reforçados pela forma como a professora foi retratada, sobretudo no filme Parahyba Mulher Macho (1983), de Tizuka Yamasaki.
“Ela simboliza tudo o que nós, mulheres, passamos. A sociedade tentou se apropriar do corpo dela, e isso acontece até hoje com a sua memória. Eu escuto perguntas muito estranhas, de coisas muito pessoais da vida dela, e que eu costumo dizer que não são fatores relevantes, que são questões, que não interessam à história”, argumenta.
Dentre as narrativas que acredita que precisam ser superadas estão a de um suposto triângulo amoroso dela com João Dantas e João Pessoa, ou ainda de que o assassinato deste último teria sido motivado pela divulgação de correspondências íntimas dos noivos. Valeska Asfora afirma que as duas especulações não possuem fundamento. Ela acredita que assassinato de João Pessoa foi o crime de um homem sertanejo que, no contexto de disputa política da época, procurava defender a sua propriedade e a honra de sua família.
“O que foi publicado foi a correspondência de João Dantas com os clientes dele, nas quais falava sobre a situação do Sertão. Uma notinha dizia ter sido encontrado um material de conteúdo imoral, que não poderia ser publicado no jornal, mas que estava na delegacia à disposição de quem quiser se ver. Não fazia referência a Anayde”, conta a pesquisadora. As indicações dadas por José Joffily, outro biógrafo de Anayde, acerca desse material são de que se trataria de um caderno com poemas dos amantes, mas que foi incinerado.
Valeska Asfora também recusa a imagem de uma Anayde feminista e não concorda com quem diz que ela foi uma mulher à frente do seu tempo: “Na minha leitura, ela era uma mulher de seu tempo, que estava conquistando, por esforço próprio, os poucos espaços que se abriam. Ela era a sua própria bandeira. Eu acho que a Paraíba era que estava um pouco atrás no tempo”. É por isso que a escritora vibra com pequenas iniciativas que procuram resgatar sua memória, sejam pesquisas, peças de teatro ou homenagens em nomes de logradouros e prédios públicos, e contam um pouco mais de sua trajetória, para além dos episódios que a enredaram de maneira abrupta, fazendo tombar uma árvore em crescimento que poderia ter dado muitos outros frutos.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de Outubro de 2025.