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Sabedoria popular

Curar o espírito

publicado: 15/12/2025 09h37, última modificação: 15/12/2025 09h37
Seja na tradição católica ou na Umbanda, ritual de processo de cura das rezadeiras está desaparecendo por conta da diminuição da transmissão às novas gerações
2025.12.02 Rezadeira Bárbara de Oliveira © Leonardo Ariel (12).JPG

Fotos: Leonardo Ariel

por Marcos Carvalho*

Edilene Barreto, mora no bairro José Américo, em João Pessoa, e levou o filho Ian, de um ano de idade, para ser rezado por dona Bárbara, como é mais conhecida na vizinhança Bárbara de Oliveira, 74 anos. A criança estava sem apetite e, mesmo acreditando que podia ser em decorrência dos primeiros dentinhos nascendo, a mãe pediu para que ela fosse rezada, com receio de ser mau-olhado.

Com um terço na mão e três ramos de sabugueiro em outra, a rezadeira benze a criança fazendo gestos em forma de cruz, enquanto balbucia o “Pai Nosso”, a “Ave Maria” e o oferecimento pedindo que todos os males afastem-se do pequeno. Poucos minutos depois, enquanto conversavam um pouco mais sobre os sintomas, o menino, que chegara tristonho, começava a pular e saltitar no colo da mãe.

As portas da casa de dona Bárbara costumam estar sempre abertas para quem busca a cura de algum mal do corpo ou da mente, ainda mais depois que seu Braz e dona Zefinha, outros rezadores do bairro, faleceram. A informação de que ela exerce o ofício espalha-se de boca em boca, tanto que chegam crianças, jovens, adultos e idosos de outros bairros, e até de outras cidades, pedindo para serem rezados. Animais de estimação também entram na lista dos que já foram abençoados. 

Dona Bárbara tirando o mau-olhado do pequeno Ian, filho de Edilene Barreto

“Eles me procuram para rezar para tudo: para cobreiro, depressão, ansiedade, dor de cabeça, todas doenças. No período de inverno, quando os meninos ficam doentes de gripe e virose, as mães procuram mais ainda a gente. Eu olho e se acho que é outra coisa, aí mando é levar no médico, porque não sei se o que eu estou rezando vai durar”, ressalta a rezadeira. Como a maioria dos moradores, a bendição é gratuita e quem desejar pode fazer uma oferta espontânea.

Foi no sítio que morava, em Catingueira, no Vale do Piancó, que dona Bárbara aprendeu os ritos e benditos que recita. Ainda criança, ela observava atentamente como a mãe e o avô, ambos de tradição indígena, rezavam para curar picada de aranha, mordida de cobra, estancar o sangue de um corte ou apagar incêndios. As adaptações para incluir os males de hoje e outras jaculatórias católicas ficaram por conta dela mesma. Para os que estão com depressão, por exemplo, ela ensina a rezar o terço do “Divino Espírito Santo”, que aprendeu na televisão, com o padre Marcelo Rossi.

Essas e outras transformações chamaram atenção da agricultora e bacharel em Ciências da Religião pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Maria Aparecida (Cida) Pontes, que aprofundou essa atividade de cura em seu trabalho de conclusão de curso. Natural de Ingá, Cida cresceu num ambiente em que existiam rezadeiras e rezadores de tradição católica ou da Umbanda em praticamente todo bairro ou sítio. Quando foi realizar a pesquisa, no entanto, encontrou apenas duas senhoras, uma delas já idosa que não conseguia mais recebê-la.

“Os rezadores estão envelhecendo e os rituais estão morrendo com eles, porque não conseguiram passar para outra pessoa a reza. Isso acontece também porque existe um caminho próprio para que elas comecem a ser rezadeiras, como um adoecimento, um sonho ou alguma coisa que possa despertá-la”, revela Cida. Ela lembra, por exemplo, que cresceu ouvindo dos antigos que a criança que chorasse na barriga da mãe desenvolvia o dom da cura.

O ofício não é exclusividade das mulheres, mas elas são a maioria. Para a agricultora, há uma predisposição feminina ao cuidado que está muito associada ao acolhimento que se pratica na reza, tanto na escuta como na disposição dessas mulheres para atender a qualquer horário.  “Não tem como a rezadeira ser alguém que não acolhe, porque ela não só reza; ela acolhe, escuta a pessoa que vem contar a história, os sofrimentos e aconselha. Qualquer hora que ela precisar de um acolhimento, a rezadeira está lá para e não diz assim: ‘Olha, senta aí e espere’, sabe?”, pontua Cida.

A conversa é parte do processo de cura, sobretudo porque direciona as palavras que serão ditas na oração. Ao observar dona Lourdes, rezadeira de Ingá, com mais de 80 anos, que participou da pesquisa, Cida percebia como ela modificava algumas frases da reza, de acordo com o que a pessoa havia relatado antes. O fato da rezadeira ser alguém do convívio comunitário também é um facilitador desse diálogo.

“A reza é a cura pela palavra. A parte mais importante da reza são aqueles dizeres e a forma como se diz, que tem um ritmo. Os ramos, o tipo de plantas que são usadas, o terço ou outros objetos fazem parte do ritual, mas não são eles que fazem a cura”, explica Cida Pontes.

A oralidade, pela qual as orações foram transmitidas, também são preservadas, inclusive com formas que se desviam do padrão gramatical. “Com dois te butaro / Com três eu tiro / Olhado, quebrante, olho excumungado, sai cima de [diz o nome da pessoa que está sendo rezada] olhado amaldiçoado / se butaro na buniteza / Na feiura / Na gurdura / Na magrenha / Na comida / No trabalho / Na pele / Na carne / Todos mal que tiver em cima de [o nome da pessoa rezada] será jogado nas ondas do mar sagrado”, transcreveu a cientista da religião em seu TCC. O rito completa-se com a oração do “Pai Nosso”, da “Ave Maria” e do “Glória ao Pai”, e é repetido três vezes, durante três dias, ao fim do qual é rezado o oferecimento às “Cinco Chagas de Jesus Cristo”.

O registro desses saberes foi uma das formas que a agricultora estudante de Ciências da Religião encontrou para preservá-los diante do risco de desaparecimento. Além da transmissão às novas gerações ter diminuído consideravelmente, outro desafio que essa prática de cura enfrenta vem dos movimentos conservadores e neopentecostais cristãos, tanto evangélicos quanto católicos, que incentivam o racismo religioso. Em alguns casos, as “rezadeiras convertidas” deixam de lado o ofício porque é visto pejorativamente, como macumba ou catimbó.

Em razão disso, Cida Pontes defende que esses saberes sejam reconhecidos institucionalmente, para possibilitar a criação de políticas públicas que garantam sua preservação. Outro caminho que ela propõe é que a reza tradicional seja incorporada ao conjunto das práticas integrativas e complementares, que buscam o autocuidado e o bem-estar do indivíduo, ao lado dos tratamentos médicos convencionais.

“Essas práticas, vivências e saberes de cura que vieram de rituais dos povos indígenas, que já estavam nessa terra, dos africanos escravizados e também do mundo europeu, precisam ser minimamente reconhecidas. É por isso que, enquanto eu limpo o mato do meu roçado, eu continuo nesse movimento, fazendo minhas pesquisas para que essas práticas ancestrais, que já passaram por muitos pagamentos, sejam valorizadas”, afirma a agricultora, que vem reunindo elementos para continuar a investigação no mestrado.

Enquanto trabalha em vista desse propósito, Cida já se alegra com as iniciativas dos benzedores digitais que encontrou nas redes sociais. Alguns dos perfis no Instagram como Sertão Místico (@sertao.mistico), que registra a tradição das rezadeiras no Nordeste, e as Benzedeiras de Brasília (@benzedeiras.brasilia), que realizam tanto o benzimento on-line como coletivo em praças, parques e postos de saúde da capital federal, chamam atenção para como essa prática pode estar passando por um processo de renovação.

“A tradição, como a gente conhecia antigamente, está passando por um processo de ressignificação, por isso eu acho que morrer, não morre. É uma tradição muito potente que as novas gerações estão redescobrindo”, aponta a pesquisadora.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 14 de dezembro de 2025.