Um dos primeiros significados da palavra patrimônio, nos dicionários, remete à noção de herança, de bens deixados por uma pessoa ou instituição. Esse sentido também se aplica à coletividade, à herança deixada por um povo, seja ela material ou imaterial, e que, assim como aquilo que veio da família, precisa ser bem cuidada para que não se perca. Para celebrar e conscientizar acerca da necessidade de preservar a herança cultural e histórica brasileira convencionou-se comemorar, a cada 17 de agosto, o Dia Nacional do Patrimônio Cultural.
“O foco desse dia é não só lembrar, mas, principalmente, defender o patrimônio. É uma espécie de grito de resistência”, sinaliza o historiador Edvaldo Lira, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep). Em alusão à data, a entidade que tem por função resgatar e preservar a memória da Paraíba, deverá promover, nos dias 25 e 26 de agosto, a segunda edição do Encontro Paraibano de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural, com palestras, debates e outras ações educativas. Na lista de bens móveis e imóveis tombados pelo Iphaep, constam mais de 140 itens reconhecidos pelo valor histórico, artístico, cultural, ecológico e paisagístico, distribuídos em 40 municípios do estado.
Além do Centro Histórico da capital, o Iphaep tem decretos de tombamento de mais 13 centros históricos de cidades do interior, como Areia, Alagoa Grande, Princesa Isabel e Campina Grande, e mais dois — em Itabaiana e Rio Tinto — estão em vias de tombamento. O historiador destaca, ainda, o tombamento temático de estações ferroviárias em 17 municípios paraibanos, e como algumas têm sido transformadas em pousadas, restaurantes e espaços culturais, de modo a tornar o patrimônio acessível à comunidade.
Esses exemplos corroboram a visão de Lira de que o brasileiro se interessa por questões relacionadas à história e ao seu patrimônio cultural, bastando que haja algum movimento mais proativo das instituições para furar as “bolhas” nas quais muitos vivem atualmente. “Eu viajei, recentemente, para as aldeias potiguaras e percebi como eles se interessam demais por cultura, por história… E eles são parte do povo brasileiro. Se o povo de João Pessoa fosse convidado a visitar os casarões antigos, por exemplo, com certeza iria amar conhecer a cultura, a história, ver como são esses casarões por dentro, saber a quem serviram… Então, o pessoense, o paraibano e o brasileiro têm interesse por história e por cultura sim”, argumenta o historiador. Nesse sentido, ele acredita ser necessário investir em educação patrimonial, desenvolvendo um trabalho mais consistente nas escolas públicas e particulares para que as novas gerações aprendam, desde cedo, a valorizar e preservar o imenso patrimônio cultural paraibano.
Se o tombamento é o instrumento jurídico criado para impor a obrigação de preservar os bens materiais, que incluem edificações como casarios e igrejas, a salvaguarda é o modo encontrado para proteger o patrimônio imaterial, que envolve saberes e fazeres como rituais, celebrações, artesanatos, comidas. É o que explica a professora de Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Lara Amorim. A docente faz questão de pontuar, no entanto, que patrimônio material e imaterial não estão separados nem se opõem.
“A abordagem do patrimônio imaterial ou intangível, como a gente chama na Antropologia, é muito mais voltada para uma ideia de presente, do que está vivo e que acontece agora, mas todas as manifestações culturais são dinâmicas e estão sempre se transformando, então há uma dimensão histórica, uma dimensão de passado que se revela no presente. A temporalidade do patrimônio imaterial está muito relacionada com a nossa memória”, esclarece, exemplificando como as conhecidas Festas do Divino possuem raízes nas festas ibéricas surgidas no século 13, carregando heranças da colonização portuguesa no Brasil.
Na lista de patrimônios imateriais brasileiros reconhecidos como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), estão a roda de capoeira, o frevo pernambucano, o samba de roda do Recôncavo Baiano, o Círio de Nazaré, em Belém (PA), considerada uma das maiores celebrações religiosas do mundo, e a Arte Kusiwa, pintura corporal dos povos indígenas Wajãpi, no Amapá. Além destas, mais 33 manifestações culturais imateriais brasileiras figuram na lista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
“Para que um bem imaterial seja registrado como patrimônio, a iniciativa tem que ser da comunidade. A salvaguarda possui uma dimensão simbólica de colocar em evidência aquela manifestação, que pode ter muita dificuldade de se perpetuar ou até estar em risco de desaparecer, pois, diferente da cultura de massa, uma das características das culturas tradicionais é que elas se propagam de geração para geração, ou seja, as crianças vão às Festas de Boi do Maranhão, por exemplo, e aprendem a dançar com os pais. Então, a salvaguarda é uma tentativa de garantir que essas tradições continuem existindo”, reitera a antropóloga.
Reconhecimento
O processo de reconhecimento público de um patrimônio imaterial feito pelos órgãos administrativos, como o Iphan e o Iphaep, possui trâmites rigorosos de registro, com elaboração de pareceres com base em pesquisas etnográficas. Contudo, iniciativas parlamentares em âmbitos estaduais e municipais também têm conferido esse título a determinadas manifestações culturais, como é o caso do Coco de Roda, da Ciranda e da Mazurca, declarados patrimônios culturais imateriais do Estado da Paraíba. Para o historiador Edvaldo Lira, em alguns casos, é preciso evitar a discussão superficial acerca desses registros.
“É necessário um debate maior entre os órgãos públicos para que se possa definir o que pode ser feito em termos de registro de patrimônio material e imaterial, senão vai ficar uma banalização. A tapioca, por exemplo, eu acredito que, um belo dia, pode ser declarada como patrimônio imaterial, mas não depende só da ideia ou do pensamento de uma pessoa; depende de um debate. Recentemente, se tentou registrar a escadaria da Penha como patrimônio imaterial, e o Iphaep orientou o governador a vetar a medida, inclusive porque toda a parte elevada da Penha já é tombada com patrimônio material”, argumenta.
Para a professora de Antropologia Lara Amorim, o reconhecimento pode ser um primeiro passo em direção a um maior cuidado com o patrimônio cultural. “Essa declaração é uma enunciação e possui uma força política, pois agrega valor simbólico, no entanto isso não é suficiente. É necessário desenvolver uma política pública efetiva de preservação pelo estado, que os órgãos competentes procuram fazer, mas contam com muito pouco recurso para registro e acompanhamento de cada caso”, pondera a docente.
Data celebra nascimento do fundador do Iphan
O Dia Nacional do Patrimônio Histórico foi comemorado pela primeira vez em 17 de agosto de 1998, quando se celebrou o centenário de nascimento do advogado e jornalista mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade, um dos principais responsáveis pela criação do Iphan e seu primeiro presidente. A partir de então, a data tem sido dedicada à conscientização da população sobre a necessidade de preservação dos patrimônios que representam a memória e a história nacionais.
Como jornalista, Rodrigo Melo Franco de Andrade foi colaborador de importantes jornais da época como O Dia, O Estado de Minas, O Estado de São Paulo e Diário Carioca. Na Revista do Brasil, onde foi redator-chefe e diretor, procurou dar espaço aos artistas do movimento modernista, com quem lutou pela consolidação jurídica do tema patrimônio cultural e pela criação do Iphan, em 1937. Ao longo dos 30 anos em que esteve à frente da instituição, o mineiro introduziu o instrumento do tombamento e executou diversas obras de conservação e restauração de pinturas antigas, esculturas e documentos, além da criação de museus regionais e nacionais, como o Museu da Inconfidência, em Ouro Preto (1938), das Missões, em Santo Ângelo (1940), e da Abolição, no Recife (1957), dentre outros.
Em sua homenagem, o Iphan criou, em 1987, o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, mecanismo de fomento às ações de preservação e salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro que, em razão da sua originalidade, relevância e caráter exemplar, mereçam registro, divulgação e reconhecimento público. Na edição de 2014, a Associação Cultural de Zabelê (Ascuza) foi premiada por incentivar, de maneira colaborativa, a produção de documentários para registrar memórias e o rico patrimônio cultural da pequena cidade situada no Sertão do Cariri Paraibano.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 17 de agosto de 2025.