Notícias

Mês da Consciência Negra

Fuga pelos caminhos da resistência

publicado: 17/11/2025 09h59, última modificação: 17/11/2025 09h59
Conheça a história do escravizado que virou manchete nos jornais paraibanos da segunda metade do século 19
Ilustra - Escravo.jpg

Sem Marcelino ter direito nem a um sobrenome, a partida para a sua liberdade representou a afirmação da sua recusa e a insubordinação da sua condição desumana | Ilustração: Bruno Chiossi

por Marcos Carvalho*

Marcelino ganhou as páginas dos jornais da Paraíba da segunda metade do século 19 pelos informes de suas fugas, prisão e julgamento. Sem um sobrenome, o escravizado era identificado pelo senhor ao qual “pertencia”, primeiro o proprietário do Engenho da Graça, que o vendeu ao dono do Engenho Gargaú. No Mês da Consciência Negra, a sua trajetória e seus passos estão sendo recuperados em um roteiro turístico que percorre locais representativos da cultura afro-brasileira em João Pessoa, como forma de lançar novos olhares sobre a historiografia paraibana.

As principais informações sobre Marcelino são das crônicas policiais do jornal O Tempo. Na edição de 8 de maio de 1865, era noticiada a sua fuga, assim como o conflito com a polícia, ocorrido 45 dias antes, após ele ter esfaqueado um de seus parceiros. Escondido na Rua da Matinha, na mesma noite do incidente, Marcelino enfrentaria os encarregados de capturá--lo, de quem conseguiu se desvencilhar. O jornal comentava ainda a existência de um boato: “Dizem-nos também que ameaça tentar contra seu antigo senhor, José Luiz Pereira Lima, morador no Engenho da Graça, perto desta cidade”. Era essa suspeita que o tornava ainda mais temido, por colocar “em risco a existência de um cidadão considerado”, conforme relata a mesma matéria.

A professora do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Solange Rocha, foi uma das pesquisadoras que analisou os relatos sobre Marcelino. Segundo a historiadora, é possível que ele tenha deixado questões pessoais não solucionadas pelos lados de sua antiga moradia, o Engenho da Graça, localizado nas imediações onde hoje é o bairro de Cruz das Armas, na capital paraibana.

A mudança de dono e de moradia é outro aspecto que provavelmente impactou o cotidiano de Marcelino. Diante do novo senhor, algumas conquistas obtidas ao longo da vida eram anuladas, obrigando-o a iniciar novas negociações.

“Esse processo poderia ser longo, e, ao que parece, Marcelino era impaciente, tendia a resolver as questões de forma mais direta, na base da violência física. As privações podiam ser também de diversas ordens, tais como: econômica, com a perda de autonomia para realizar a comercialização de produtos ou para realizar algum trabalho extra na capital ou nas propriedades vizinhas; afetiva, como a separação de parentes e de parceiros de cativeiro; e/ou pessoal, com a limitação para deslocamentos e restrição à vida social com pessoas escravizadas e livres”, explica a historiadora. As descrições dos jornais sobre Marcelino também a levam a supor que ele possuía alguma autonomia para circular pela então Cidade da Parahyba, inclusive para desfrutar momentos de lazer e manter amizades com pessoas não escravizadas.

A historiadora e professora da rede pública Elainne Dias também pesquisou o perfil da população escravizada nos anúncios de periódicos paraibanos oitocentista. Ela destaca que a permanência de Marcelino em liberdade e o sucesso de sua fuga podem ser atribuídos a uma possível rede de apoio. No jornal O Publicador, a pesquisadora encontrou relatos de que Marcelino era “acoutado” pelos moradores da Rua da Matinha, reforçando essa suspeita. Ao mesmo tempo, a divulgação na imprensa dos lugares por onde ele passava parece indicar também que existiam pessoas dispostas a denunciá-lo e ajudar na sua captura, inclusive porque oferecia-se uma gratificação de 100 mil réis pela sua prisão. Numa outra matéria, o motivo alegado de Marcelino ter ferido seu parceiro seria a suspeita de ele ter denunciado o local onde se escondia.

“Marcelino permaneceu fugido por aproximadamente oito meses [de março a outubro de 1865]. Sua fuga, para a sociedade escravista do Brasil e, consequentemente, da Paraíba oitocentista, representou não apenas uma ameaça à ordem social e econômica naquele período, mas também uma ameaça simbólica, um instrumento de poder, uma vez que, ao fugir, Marcelino afirmou sua resistência, sua recusa e a insubordinação da sua condição desumana, que desafiou constantemente a escravidão em busca de sua liberdade e autonomia”, afirma Elainne Dias.

Marcelino foi preso em 23 de outubro daquele mesmo ano e levado a julgamento dois meses depois pelo crime de ferimentos graves. Ainda que contasse com um advogado para realizar a sua defesa, foi condenado a oito anos de prisão e multa, penas convertidas pelo juiz em 200 açoites. Elainne Dias ressalta que, no contexto da sociedade da época, o dono do escravizado preferia a pena em açoites em vez da reclusão, pois esta última o impediria de trabalhar.

Nos passos do fugitivo

Felipe Coutinho, idealizador e guia da agência de afroturismo Apuama, mapeou os locais onde Marcelino se escondia durante as fugas para montar o roteiro intitulado Marcelino: Caminhos de Resistência, Liberdade e Encruzilhadas. Os estudos e pesquisas sobre sua história foram fundamentais para montar o trajeto que será realizado pela primeira vez na próxima quinta-feira (20), o Dia da Consciência Negra.

“No trabalho de pesquisa, a gente descobriu que ele se escondia e era visto na região da Matinha, que é justamente onde, hoje, se situa o Cemitério Senhor da Boa Sentença e toda a região do entorno do Cordão Encarnado, uma parte do bairro Varadouro. No roteiro, a gente vai passando por esses territórios, que hoje são pontos de memória, como a Praça da Pedra, local de encontros de coco de roda e samba, e contextualizando como as pessoas que conseguiam comprar sua liberdade residiam naquele entorno, em casas de barro, palha e taipa”, explica Coutinho.

O guia faz questão de ressaltar a participação de Marcelino nesses espaços culturais como forma também de humanizar uma pessoa que foi representada nas páginas dos jornais como uma figura animalizada. Desconsideram-se aspectos importantes de sua vida, como o fato de se tratar de um homem que estava resistindo e buscando se situar com os negros e as negras que já tinham encontrado sua liberdade.

“Marcelino fugia justamente em horários noturnos, que era quando a senzala se encontrava aberta e seu senhor ia descansar. A gente imagina que ele ia para a região da Matinha a fim de se encontrar com os seus e participar também das manifestações culturais, se divertir, encontrar com os colegas. Foi a partir daí que a gente foi montando um roteiro, revisitando esses lugares”, acrescenta.

O roteiro prevê ainda paradas na Ponte do Baralho e um passeio de canoa margeando o Rio Paraíba até o Porto do Capim, espaço de povos originários e atualmente habitado por famílias de pescadores, onde será servido um almoço com culinária local e realizada uma vivência conduzida por guias da própria comunidade. O novo roteiro será incorporado à programação da Apuama Turismo, tornando-se o quarto passeio conduzido pela agência no Centro Histórico de João Pessoa, que já realiza a Caminhada Jampa Negra, a rota Sankofa Paraíba e a rota Raízes do Catolicismo Negro.

Além dos moradores locais e turistas, Felipe Coutinho reforça também a importância de apresentar essas narrativas a estudantes do ensino básico, atendendo ao que propõe a Lei no 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas. Ele acredita que a educação antirrracista, trabalhada por meio do turismo pedagógico, consegue aliar conhecimento científico e histórico com vivência de questões locais e atrair as novas gerações para redescobrir a história dos povos negros e originários na Paraíba.

“Resgatar e humanizar a memória de um escravizado como Marcelino e de tantos outros que passaram no nosso território é reconhecer que eles se manifestaram e influenciaram na cultura e culinária local, nas construções de todos os bens coloniais e do período imperial que temos até hoje; que contribuíram na arquitetura de tudo que a gente vê nessa cidade histórica, que é a terceira capital mais antiga do nosso país. É como dar um novo sentido à nossa historiografia, quebrar um pouco o olhar eurocêntrico das narrativas, que passam a ser vistas sob a ótica da população negra e da população indígena. Isso ajuda também a dar sentido de vida a pessoas que estão em áreas periféricas sendo subjugadas, ainda hoje”, defende Coutinho.

Para mais informações e inscrições da rota, basta acessar o site oficial do projeto.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 16 de novembro de 2025.