Dos muitos olhares lançados sobre a memória e as manifestações culturais da Paraíba, a literatura de cordel representa um ângulo original e importante, seja pela riqueza de detalhes que apresenta sobre o contexto sociocultural, econômico e político, seja pela forma de contar, que envolve aspectos da oralidade e elementos de humor. É nesse sentido que professores e estudantes de Jornalismo da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) têm desenvolvido pesquisas voltadas para analisar e compreender como os cordéis reportam aspectos da história e da cultura de Campina Grande e de outras regiões do Agreste e Sertão do estado.
“É através dos folhetos que a história de cidades, fatos, pessoas [autoridades ou não] e comunidades é contada, de forma mais suave e mais alegre”, afirma o professor Orlando Ângelo, que orientou pesquisas em torno de cordelistas que contavam a história de logradouros de Campina Grande, a exemplo do primeiro conjunto habitacional da cidade, construído na gestão do então prefeito Severino Cabral.
Foi na feira de sua cidade natal, Piancó, no Sertão Paraibano, que o docente desenvolveu, ainda criança, o gosto pelo cordel. Costumava ouvir os folheteiros fazendo a leitura dos versos e toda moeda que ganhava juntava para comprar cordel, tanto que, até hoje, lembra o título do primeiro deles: O casamento do bode com a raposa. Muitos anos depois, após passar pelas redações de rádios e jornais impressos, inclusive do jornal A União, os cordéis tornaram-se seu objeto de trabalho durante a pesquisa de mestrado, quando aprofundou a intercessão entre esse tipo de literatura popular e o jornalismo.
“O cordel é jornalismo puro, pois nele encontramos muitas informações perdidas pelos meios convencionais. São informações contadas de forma mais descontraída e divertida. Claro que diferem na forma de redação e apresentação, pois ambos têm suas regras próprias. Os autores do cordel buscavam inspiração no cotidiano das pessoas e das comunidades, tendo uma observação singular sobre o que acontecia em cada momento da história, além disso, o faziam com humor, fidelidade e divertimento. Importante observar que os cordelistas não inventavam histórias, eles contavam o fato existente de forma divertida e alegre”, explica o pesquisador.
Para a curadora de cordel da Pró--Reitoria de Cultura da UEPB, Joseilda Diniz, falar sobre a terra natal é um dos princípios fundadores dos poetas populares, que se colocam como porta-vozes das comunidades para traduzir os sentimentos de pertença de um povo. É a partir desse pressuposto que se pode entender as diferentes abordagens acerca dos acontecimentos históricos e religiosos, das questões do cotidiano ou de lazer. Ela recorre a um trecho do poeta Manoel Caboclo e Silva para sintetizar essa ideia:
“Há muito mais de um século
Todo sertão brasileiro
Principalmente o Nordeste
Este vem sendo o primeiro
Que tem através do verso
Notícia do mundo inteiro.
Temos jornal e revista
Mas o sertão não conhece
A sua atualidade
Em poucas cidades cresce
Sertão só se informa bem
Quando o cordel aparece”.
Joseilda recita os versos como fazia sua avó, uma agricultora que, mesmo sem reconhecer as letras, sabia de cor e contava O Quinze, romance de Rachel de Queiroz, transformado em poesia. Essa é outra dinâmica que a paraibana faz questão de ressaltar: mesmo sendo um escrito, o cordel não deixa de pedir uma voz e um ritmo para ser declamado, assim como a presença de um público, para uma comunicação do “contar de boca ao ouvido”. Às origens da professora, somam-se as pesquisas sobre poéticas da oralidade e os trabalhos desenvolvidos como integrante da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) e da Academia de Cordel do Vale do Paraíba (ACVPB), de modo a definir-se também como uma ativista cultural. Para ela, não é estratégia de marketing dizer que a Paraíba é o berço do cordel.
“É a Paraíba que abriga os maiores nomes da cantoria de repente e do cordel, como também dos editores, aqueles que produziam e distribuíam os folhetos, como Leandro Gomes de Barros. Então, a Paraíba tem isso no seu DNA. Ao longo dos séculos, essa tradição oral se manteve perene, abordando desde a historiografia local a questões que remontavam a vinda dos colonizadores e das diferentes culturas que aqui adentraram e firmaram as bases desse país”, argumenta.
Interseção com o jornalismo
- Pesquisa da UEPB estudou como os cordéis contam a história campinense, observando, por exemplo, a reprodução de estereótipos juninos
O professor Roberto Faustino, do Departamento de Comunicação da UEPB, também vem realizando investigações sobre a temática. Para ele, ao tomarem como referência os fatos e acontecimentos em nível local, regional, nacional e até global, alguns poetas populares assumiram o papel que os jornalistas exercem atualmente, sobretudo junto às populações mais remotas e de baixa renda e no contexto de uma indústria cultural ainda por se consolidar. O docente faz questão de pontuar, no entanto, que não se pode cobrar da literatura um comprometimento com a realidade, que é da natureza do discurso jornalístico.
“Isso é importante para a gente não esperar ou criar uma expectativa de uma literatura de cordel capaz de retratar o real, o concreto, portanto, a história, a memória da Paraíba, do Estado, da nossa sociedade, do nosso povo. Por não ter um compromisso maior com a realidade, a arte pode, inclusive, ser surreal, pode conceber e expressar a realidade a partir dos desejos do próprio artista, do movimento, da escola que está sendo analisada”, ressalta Faustino.
Na pesquisa de iniciação científica “Campina Grande representada na Literatura de Cordel: comunicação, história e memória”, levada adiante com o jornalista João Carlos Trajano, foram analisados alguns cordéis sobre o Maior São João do Mundo. Eles identificaram como arquétipos, a exemplo de balões, fogueiras e trajes típicos, tendem, muitas vezes, a reproduzir uma visão construída a partir daquilo que era difundido na própria imprensa.
“É uma representação que a gente poderia chamar de romântica ou saudosista, e que, às vezes, acaba fazendo prevalecer uma expressão de antigamente, que, na verdade, já perdeu seu sentido ou foi ressignificada pela própria população. É o caso das quadrilhas, por exemplo, representadas por esses poetas em formas clássicas, que não mais representam como elas se configuram na contemporaneidade”, exemplifica.
Decadência ou ascensão?
Para o professor Orlando Ângelo, o cordel vem perdendo o seu valor comercial ao longo do tempo. Em entrevistas que realizou com vários poetas, o pesquisador alegou perceber a tristeza e a decepção dos artistas com a desvalorização do trabalho que faziam. “Apesar do cordel ainda ser utilizado como instrumento paradidático, entendo que vem perdendo espaço. A própria oralidade também perde espaço para as novas tecnologias. As crianças, que são a base de tudo, hoje preferem o smartphone, que tem tudo o que quer ver e o que não deveria ver. Mas não só as crianças, os adultos também. Lamentavelmente, [o cordel] vem perdendo popularidade. Não há como concorrer com as novas tecnologias, porque crianças, jovens e adultos já fizeram sua opção”, lastima o docente.
A professora de literatura Joseilda Diniz, por sua vez, defende que o cordel vive um dos seus melhores momentos. Ela recorda como essa expressão da cultura popular passou por transformações ao longo do tempo, como quando as performances das cantorias dos repentistas deram lugar aos versos impressos nos folhetos, aproveitando-se da tecnologia tipográfica para se expandir e chegar onde, até então, os poetas não conseguiam. Segundo a pesquisadora, ainda que o cordel tenha deixado de circular em locais populares, como as feiras, é preciso considerar o quanto, a partir das inovações tecnológicas, ele tem ganhado o mundo.
“A feira é um ambiente magistral, dos intercambiamentos, das trocas de saberes e de fazeres, onde tudo acontecia na vida cultural de uma cidade, mas é também um extrato periférico. Hoje, o cordel está na universidade, onde é fonte de pesquisas para trabalhos de conclusão de cursos, mestrados e doutorados, está nos museus, nas livrarias, nos aeroportos. O cordel nunca esteve tão bem, tão destacado como protagonista”, argumenta. E, recorrendo aos versos do poeta Afrânio de Brito, arremata:
“Vem de um tempo cruel, medieval,
Pelas ruas e feiras foi cantado,
Pelos centros mais cultos foi tratado
Como literatura marginal.
O seu nome nasceu em Portugal
Onde o mesmo era exposto num cordão,
No Brasil, numa nova geração,
Juntamente aos poetas da viola
O cordel hoje entra na escola
É cultura, é lazer e educação”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 31 de agosto de 2025.