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Acervo histórico

Na arqueologia do papel

publicado: 21/07/2025 09h24, última modificação: 21/07/2025 09h24
Veja como o Laboratório de Paleografia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) decifra a história
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Estudante de Arquivologia, Mayara dos Santos trabalha em uma transcrição de documentação para a linguagem contemporânea no laboratório localizado no bairro do Cristo, em João Pessoa | Foto: Roberto Guedes

por Marcos Carvalho*

Depois de mais de meia hora analisando detalhes de um manuscrito e de consultar um livro de formas de abreviação do português arcaico, a jovem estudante de Arquivologia Mayara dos Santos não se conteve e, contente de seu achado, disparou para a colega Girlene Sales: “Encontrei!”. A descoberta referia-se ao nome do provedor da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba, cuja grafia apresentava dificuldade para decifrar. As estudantes integram a equipe do Laboratório de Paleografia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), coordenado pelo professor do curso de Arquivologia, Ramsés Nunes e Silva.

“Eu já tive experiência em que a gente pode estar com um documento muito simples, de cinco linhas, por exemplo, e não compreender ele por uma única palavra. Às vezes, tem que associar o documento a outros e comparar para ver como escreve um ‘A’ e um ‘B’, para tentar recompor o texto; e, às vezes, é preciso entender também o contexto”, explica o docente, que há dois dias vem procurando referências sobre um oficial português citado em um dos documentos, na busca de entender as relações políticas e sociais que justificaram sua alusão.

Situado no bairro do Cristo Redentor, em João Pessoa, no Campus V da UEPB, o Laboratório de Paleografia guarda, atualmente, duas coleções: o acervo da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba, formado por quase 24 m de massa documental, entre manuscritos, impressos e fotografias datadas a partir do século 18; e o arquivo do padre e educador Odilon Pedrosa, constituído de cerca de 300 livros e 15 cartas, cedidos pelos familiares do religioso.

Entre as raridades já encontradas até agora no acervo da Santa Casa de Misericórdia, Ramsés cita um relato da visita de Dom Pedro II à instituição: “A descrição que ele faz da cidade e o olhar que ele tem são muito interessantes. Ele diz que a cidade era bem arborizada naquela época, embora tenha achado muito quente, porque ele veio no verão”. Outro documento citado pelo pesquisador é uma carta do primeiro bispo na Paraíba, Dom Adauto Miranda Henriques, na qual ele faz a nomeação de padres que vinham da Europa para assumir as paróquias locais. Do acervo do padre Odilon Pedrosa, o docente mostra o documento de sua ordenação, ocorrida em 1925, na Basílica de São João de Latrão, em Roma, que ainda mantém o selo de cera que servia para dar autenticidade ao documento.

Quando todo esse material chega ao laboratório, passa por um processo quase industrial de triagem. No primeiro espaço, os documentos são higienizados em duas estufas utilizadas para controlar a umidade e retirar fungos e bactérias. A prioridade são aqueles que se encontram mais frágeis, para evitar que o processo de deterioração se prolongue. Para entrar na sala, é preciso fazer uso de equipamentos de proteção individual (EPI), como jaleco, óculos e luvas. Somente depois desse primeiro tratamento, ele pode seguir para o segundo espaço, o arquivo corrente, onde fica disponível para consulta dos pesquisadores.

“Um documento não trabalhado tem fungos e apresenta uma série de problemas, mas, quando vai para o segundo arquivo, ele já está higienizado e armazenado dentro das condições climáticas necessárias para ficar protegido”, esclarece Ramsés Nunes. 

Iniciativa é coordenada pelo professor do curso de Arquivologia da UEPB, Ramsés Nunes e Silva; objetivo do laboratório é disponibilizar todo o trabalho de reconhecimento da documentação num repositório digital, para acesso ao público em geral | Foto: Roberto Guedes

No novo espaço, começa o trabalho de identificação e catalogação do acervo, que o pesquisador denomina de uma verdadeira arqueologia do papel, pois envolve não só a descrição de seu conteúdo, como também o registro das condições documentais, a exemplo de possíveis falhas ou buracos feitos por traças, assim como anotações posteriores a sua data original, indícios que ajudam a recontar seu percurso histórico.

Para o trabalho de paleografia, isto é, de transcrição da documentação para a linguagem contemporânea, é preciso muita paciência. O professor afirma que uma boa parte dos documentos do acervo da Santa Casa de Misericórdia deverá passar por esse processo antes de ser disponibilizado ao público. Num documento do século 18, por exemplo, o termo ‘posse’ era escrito com o ‘S’ cruzando de um lado para o outro. Também não havia espaçamento entre as linhas, fazendo tudo parecer um grande emaranhado. O coordenador do Laboratório de Paleografia explica que somente a partir de um decreto do Marquês de Pombal que se tornou obrigatório o uso de termos mais uniformizados segundo uma designação gramatical. “Tem sido divertido e trabalhoso”, brinca Ramsés.

Como o acervo está passando pelo processo de digitalização, a equipe não dispensa o uso de tecnologias de inteligência artificial (AI), de modo a treinar a ferramenta para reconhecer palavras já identificadas pelos pesquisadores. A estudante Girlene Sales conta que é preciso treinar a plataforma de IA para reconhecer o tipo de escrita e o significado de algumas palavras.

“Eu insiro uma parcela da documentação, faço a leitura parcial e peço para a ferramenta tentar entender. Por exemplo, se eu digo que uma palavra se refere ao nome de uma escrava chamada Perpétua, ela identifica dentro do texto qual é a forma daquela palavra e começa a traduzir o restante da documentação com essa informação. Facilita muito, mas de vez em quando a gente precisa conferir no documento original, porque nem sempre é possível identificar, por exemplo, se uma mancha se refere a uma mancha mesmo ou a um buraco no papel”, pondera Girlene.

O objetivo do laboratório é disponibilizar todo o trabalho de reconhecimento da documentação num repositório digital, para acesso tanto de pesquisadores quanto de pessoas interessadas em obter referências para questões familiares que estejam vinculadas aos documentos identificados. Como o acervo é muito extenso e o trabalho muito demorado, cada documento está sendo identificado e catalogado aos poucos. Enquanto isso, o laboratório vem sendo utilizado nas aulas de Paleografia do curso de Arquivologia da UEPB, ministradas por Nunes, e também em oficinas com professores de Ensino Médio da rede pública de ensino. Outra possibilidade que Ramsés vislumbra são visitas de turmas de Ensino
Médio para conhecer a coleção.

“O documento pelo documento, enquanto tal, não teria uma função, mas o documento exposto socialmente e as agruras e dificuldades de um processo histórico têm uma função muito mais efetiva. Imagina poder mostrar, para um aluno, uma carta de alforria e potencializar a compreensão dele, historicamente no passado, mas também no presente? Como o campus da UEPB está centrado num bairro da Zona Sul, a gente quer trabalhar essas questões socioculturais a partir da documentação”, projeta Ramsés Nunes.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 20 de julho de 2025.