O Dia de Reis, celebrado amanhã, marca o fim do ciclo natalino na tradição cristã católica, quando se recorda a visita dos três Reis Magos ao Menino Jesus, sendo costume também retirar os enfeites de Natal. Na Paraíba, essa data ganha um toque especial, pois comemora-se o Dia Estadual do Cavalo Marinho e do Boi de Reis, dois folguedos de origem ibérica que ganharam feições específicas no estado.
Aos 67 anos, o Mestre Nandinho (José Fernando de Oliveira), afirma ter duas profissões: uma de sobrevivência, a mecânica de refrigeração, e outra de resistência, como militante da cultura popular do Cavalo Marinho. Ele orgulha-se de pertencer a um dos poucos grupos do folguedo da Paraíba que mantém uma “linhagem”: o Cavalo Marinho Raiz Cultural do Mestre Zequinha, de Bayeux, na Grande João Pessoa, é herança das brincadeiras promovidas pelo Mestre Gasosa (José Raimundo da Silva) e pelo Mestre Zequinha (José Francisco Mendes), ambos já falecidos, mas com quem Nandinho conviveu por cerca de 20 anos.
“Quando era criança, eu nem gostava desse segmento do Boi de Reis e do Cavalo Marinho, porque tinha medo dos três mascarados e me escondia”, relata, referindo-se aos personagens Mateus, Birico e Catirina. “Foi algo bem misterioso: depois do convite de um amigo, chamado Zé Bento, eu comecei a participar e até hoje não tenho mais como sair. E também não quero”, revela o brincante.
O tempo livre do mecânico é para dedicar-se ao folguedo. Desde os ensaios, que faz questão de realizar no meio da rua, em pleno Centro da cidade de Bayeux, até a organização das viagens para se apresentar e os cuidados para que tudo fique novamente pronto para uma outra vez. “É bem prazeroso a gente viver desse mundo da cultura popular. Eu me torno jovem a partir desse ritual de estar cuidando ou lavando a roupa, costurando uma gola que desfez ou uma coroa que é preciso refazer”, comenta.
O grupo conta com mais de 20 integrantes, divididos em percussionistas (rabeca, pandeiro, triângulo e ganzá), os três mascarados, os 12 Galantes, o mestre, o contramestre e o Índio Oberdan, que ressuscita o boi, além de um assistente de palco. O folguedo provém da Zona da Mata de Pernambuco, onde originalmente chamava-se Cavalo Marim, porque um dos personagens era o Capitão Marin. Aos poucos, com a oralidade, convencionou-se chamar de Cavalo Marinho e o nome ficou. Apesar da semelhança do nome, na Paraíba a tradição ganhou outros contornos.
“O nosso Cavalo Marinho aqui, de Bayeux, tem uma mistura do Boi de Reis com o Cavalo Marinho da Zona da Mata pernambucana”, afirma Mestre Nandinho. Segundo ele, são aproximadamente 60 personagens e uma brincadeira que, se fosse feita por completo, levaria cerca de seis horas, tempo incompatível com a maioria das apresentações feitas em festivais, feiras e outros eventos.
Resistências
Apesar dos desafios que a maior parte dos grupos populares enfrentam para manter viva a cultura, o Cavalo Marinho do Mestre Zequinha ganhou incentivo graças a um projeto de salvaguarda, fruto de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Grupo Alphaville. Com isso, o folguedo pode construir e reformar uma parte do material que utiliza nas apresentações, além de promover oficinas para ensinar algumas partes da brincadeira aos moradores. “Era como um carro parado, com os pneus furados. Agora, depois de consertado, a gente está em alta velocidade”, compara Nandinho.
Outro impulso que o brincante também cita são os grupos que considera parafolclóricos, aqueles criados mais recentemente por pessoas interessadas em adaptar a tradição. Apesar de não terem sido transmitidos diretamente dos antigos mestres, Mestre Nandindo considera que esses grupos são importantes para incentivar e colaborar na manutenção da cultura popular, pois conseguem concorrer a editais públicos e utilizar melhor as redes sociais para divulgar seu trabalho e, consequentemente, o folguedo.
É com esses sinais de esperança que o militante do Cavalo Marinho Raiz Cultural vislumbra o futuro: “Eu estou apelando para que apareça um aprendiz de louco, igual a mim, que se deixou contaminar na veia com o sangue dessa tradição, entendeu? Tem que ser aquele sucessor capaz de rir e chorar com o folguedo, que tenha paciência na hora de organizar e lidar com o grupo, que tenha um espírito de liderança. Eu acredito que Deus vai me dar força e saúde para demorar mais alguns dias e poder encontrar esse sucessor”, conclui.
No Sítio Caiçara, Zona Rural do município de Dona Inês, no Brejo paraibano, esse aprendiz já apareceu e chama-se Robson Ferreira. O músico e estudante de Letras pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) tem 19 anos e não mede esforços para levar adiante o Boi de Reis, a tradição que começou com o seu bisavô, conhecido na região por José Homem.
Robson ingressou no folguedo ainda adolescente, em 2013, quando representava a personagem Dama. Naquela ocasião o grupo estava recomeçando as atividades depois de alguns anos sem se apresentar. Em seguida, o jovem passou a ser Galante, outro personagem do folguedo. Atualmente, ele é o sanfoneiro e o responsável por organizar as viagens e apresentações do grupo.
Quem comanda a brincadeira é o mestre (Antônio Marcolino) e o contramestre (João Macolino), avô e tio de Robson, respectivamente, que contam a história da morte e ressurreição do boi por meio de loas, cantigas e refrãos, sempre repetidos pelos demais integrantes. O vaqueiro Birico conduz a narrativa, fazendo também referência ao dia a dia dos moradores e promovendo maior interação com o público, ao lado de Catirina, mulher de Birico, do Matheus e do Boi, o protagonista da encenação. A brincadeira toda começa com os aboios, canto característico de vaqueiros para guiar o gado, aos quais se misturam versos de cunho religioso, relembrando a visita dos Reis Magos ao menino Jesus — daí o nome Boi de Reis.
O folguedo é o único no município de Dona Inês e conta atualmente com 13 integrantes, quatro dos quais são jovens, incluindo Robson Ferreira. Apesar das críticas dos amigos da sua geração, que consideram que o folguedo é algo ultrapassado, ele não pretende deixar de lado a brincadeira. “É uma alegria muito grande. O coração chega a palpitar por estar levando à frente uma tradição tão importante que é o Boi de Reis e que vem de família. É justamente por ser antigo que nós, os jovens, somos a continuidade e também a oportunidade de levar essa tradição para as outras gerações”, defende Robson.
O dia Estadual do Cavalo Marinho e Boi de Reis da Paraíba foi instituído pela Lei n° 12.547, de 28 de dezembro 2022. Outra lei da mesma data (Lei n° 12.545) reconhece os dois folguedos como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 05 de janeiro de 2025.