Até a segunda metade do século passado, o destino de muitos brasileiros passava pelos trilhos. Somente no Nordeste, a malha ferroviária chegou a
4.500 km. Na Paraíba, eram 640 km de estradas de ferro que se estendiam do Litoral ao Sertão e se cruzavam com ramais que conduziam aos demais estados. Situação bem diferente de hoje, onde permanecem as lembranças e memórias resgatadas por meio de relatos históricos, registros fotográficos e movimentos que buscam, ao menos, recuperar as antigas estações nos municípios.
Jônatas Rodrigues trabalha no ramo de eventos, mas a paixão por tudo que envolve trens e o mundo ferroviário vem da infância, quando brincava com o Ferrorama do tio. Natural de Campina Grande, costumava atravessar a linha férrea nas imediações da Avenida Almeida Barreto para ir à escola e ficava fascinado quando via as grandes locomotivas de carga. Já adulto, o deslumbramento se transformou em curiosidade. Ele começou a pesquisar em
sites, livros e museus até que criou o blog História Ferroviária Paraibana, para compartilhar um pouco dos seus achados com outros interessados no tema.
“Muitos pesquisadores, Brasil afora, têm se esforçado para preservar e transmitir um pouco dessa história gloriosa. No meu caso, tento passar de forma detalhada e correta um pouco da história ferroviária paraibana através do blog, trazendo histórias, imagens e curiosidades de nossa ferrovia a todos que se interessam em um passado que gradativamente está sendo esquecido, o que é lamentável. Para quem é amante da ferrovia, como eu, é triste ver estações abandonadas, muitas delas destruídas”, desabafa.
Disponibilizar os resultados de suas pesquisas foi a forma encontrada pelo campinense para garantir a transmissão de conhecimento às futuras gerações. Jônatas relata que o primeiro trecho de ferrovia, inaugurado na então Província da Paraíba, ocorreu em 7 de setembro de 1883, ligando a capital até Mulungu, que à época ainda era povoado. Dois meses depois, os trilhos chegariam até Pilar; no ano seguinte, até Independência (atual Guarabira) e, no fim do Império, até a então povoação de Cabedelo. Na República, a expansão ferroviária prosseguiu até o fim da década de 1950, incluindo ramais de trem que seguiam até Alagoa Grande, Itabaiana e Timbaúba, esta última a primeira ligação com Pernambuco; depois até Nova Cruz, conectando a Paraíba ao Rio Grande do Norte; e, por fim, ao Ceará, com a inauguração de linhas que passavam pelas cidades paraibanas de São João do Rio do Peixe, Cajazeiras, Sousa, Pombal, Malta e Patos. Os trilhos chegaram ainda a Bananeiras e contemplaram um trecho entre Sousa e Mossoró, no Rio Grande do Norte.
O declínio da malha ferroviária teve início na década de 1960, durante o Governo Militar. Ramais como o de Cajazeiras, Alagoa Grande e Bananeiras foram desativados, seguindo-se a retirada dos trilhos. Em 1980, o tráfego de passageiros no estado foi suspenso, circulando apenas os trens de carga. Em 1982, com a criação da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), o transporte de passageiros foi retomado em várias capitais, entre elas João Pessoa, e cidades vizinhas. Jônatas Rodrigues alega que, com a privatização do transporte ferroviário, em 1997, a malha ferroviária paraibana teve um declínio acentuado, muitas estações fecharam e as linhas se tornaram ociosas ou foram abandonadas, processo que se prolongou até o fim da década de 2000 e início da década de 2010. Dentre as causas, ele cita a falta de investimentos na manutenção e modernização da infraestrutura, a concorrência do transporte rodoviário e a ausência de projetos e políticas públicas para o setor, que foi abandonado com as mudanças de governos.
“A importância da ferrovia na Paraíba foi sem igual. Inúmeras localidades foram ligadas via férrea a outras criadas e muitas outras se desenvolveram a partir da introdução do ‘cinturão de ferro’ em território paraibano. O escoamento dos produtos como o algodão, sisal, açúcar e minério, entre outros, foi agilizado em vez das vagarosas e perigosas viagens em lombo de animais, carros de boi ou mesmo a pé, transportes que predominavam nos primórdios da colonização em quase todo o território nacional, que duravam dias ou mesmo meses para serem concluídas”, destaca Rodrigues.
Estação como morada
As lembranças de infância também motivaram o jornalista Josélio Carneiro a escrever o livro Nos trilhos da memória: pare, olhe, escute (Letras e Versos). Como filho, neto e sobrinho de ferroviários, ele se diz um menino de “beira de linha”, porque nasceu e cresceu no entorno das ferrovias. No tempo em que seu pai, João Maria de Araújo, era funcionário da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), permitia-se que o chefe do serviço morasse com a família no prédio da própria estação. Mesmo quando seu pai se tornou telegrafista, a morada era sempre próxima ao local.
“Eu tenho a lembrança do meu pai como chefe da estação. Quando o trem chegava, era ele que dava a licença ao maquinista para o trem partir, mas tinha também o funcionário que batia o sino pra dar sinal de que podia seguir. Na Estação de Nova Cruz [RN], onde a gente morou um bom tempo, havia muito movimento, passavam trens vindo de Natal e do Recife em direção a João Pessoa. Essas memórias e outras relatadas por minha mãe me levaram a fazer anotações e produzir esse livro, em 2023”, contou o jornalista.
O resgate, que também inclui registros fotográficos do acervo pessoal, percorre a história da ferrovia na Paraíba a partir da trajetória familiar do escritor e traz entrevistas com defensores da preservação da memória da ferrovia paraibana, a exemplo do próprio Jônatas Rodrigues, e de personalidades envolvidas na revitalização das antigas estações abandonadas nos municípios.
Segundo o autor, o livro tem contribuído para fortalecer a mobilização em defesa do patrimônio ferroviário na Paraíba. Ele destaca, por exemplo, a revitalização das estações de Guarabira e Sousa, transformadas em espaço cultural, turístico e de lazer, que incluem praça de convivência e quadras esportivas. Reformas que estão sendo feitas também na estação ferroviária de Alagoa Grande. Com um grupo, foi levado adiante a proposta de uma sessão especial na Assembleia Legislativa da Paraíba (ALPB) para tratar do tema, que acontecerá ao longo do ano. A luta tem sido pela revitalização da área no entorno das estações para visitação e a transformação dos prédios em bibliotecas, memoriais ou museus.
“No passado, no Brasil e no mundo todo, onde surgia uma estação de trem surgia a evolução: primeiro um povoado, depois uma vila, depois a cidade. O trem tem sua importância como transporte de passageiros, de carga e no desenvolvimento das cidades. Ainda hoje é importante em muitos países, como na Europa e nos EUA. Dos países de grande extensão territorial, eu costumo dizer que só o Brasil está fora dos trilhos: parou no tempo a partir dos anos 1960 e deixou de investir na ferrovia”, lamenta o pesquisador.
Ainda que a malha ferroviária paraibana atualmente se restrinja à Grande João Pessoa (CBTU), e os muitos quilômetros de trilhos no estado tenham ficado no passado, tanto Jônatas como Josélio ainda acreditam em um futuro diferente. O campinense voltou a sonhar com os projetos da volta da ferrovia de cargas em território paraibano e o plano de implantar o sistema de VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), em um trecho de 15 km no perímetro urbano de Campina Grande. O jornalista, por sua vez, ainda espera que um dia o Brasil desperte para investir em ferrovias a partir de parcerias entre o Governo Federal e a iniciativa privada. “Se hoje em dia existisse uma boa malha ferroviária funcionando, isso ajudaria bastante na economia, na agropecuária e no turismo. Já pensou alguns trens fazendo turismo aqui na Paraíba, no Brejo e na região de Campina Grande, enfim?”, imagina Josélio Carneiro.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 20 de janeiro de 2025.