Nenhum dos grandes ciclos socioeconômicos ocorridos ao longo de cinco séculos da história do Brasil teve um papel tão preponderante na formação do povo brasileiro quanto o ciclo da cana-de-açúcar. A alma brasileira está, definitivamente, vinculada a essa atividade devido à intensa interação de três raças e três culturas que iriam moldar, de forma natural, o caráter do homem brasileiro. Somos uma inegável fusão da cultura dos povos originários, dos europeus e dos africanos. A ocupação territorial dessa terra, chamada de “Pindorama” pelos povos nativos, só iria se estruturar com o encerramento do extrativismo que caracterizou o ciclo do pau-brasil, coincidindo, exatamente, com o surgimento do ciclo da cana-de-açúcar, primeira atividade agroindustrial do Brasil Colônia.

- Terceira edição de “Menino de Engenho”, de José Lins do Rego, uma das obras que possibilitou um mergulho profundo no ambiente íntimo dos engenhos
Os engenhos foram instalados, originalmente, nas terras férteis e úmidas da linha litorânea do Nordeste. Essas unidades dispunham de grandes áreas para cultivo da cana e possuíam estrutura para o fabrico do açúcar. A crescente demanda europeia pelo produto brasileiro promoveu uma rápida expansão dos engenhos, que também passaram a ocupar territórios úmidos mais afastados do litoral. Como os nativos não se subjugaram nem se adequaram ao trabalho do eito, o império português não hesitou em trazer da África a mão de obra escravizada, para manter a produção e comercialização do chamado “ouro branco”, que o Brasil enviava diretamente para Portugal. O sangue e o suor dos africanos alimentaram a máquina geradora dessa riqueza agroindustrial até ocorrer a abolição da escravatura, em maio de 1888.
O mundo dos engenhos, durante mais de dois séculos, não foi apenas a principal fonte de riqueza do Brasil Colonial, foi também o verdadeiro ventre da nação brasileira. Portugal havia dividido a Terra de Santa Cruz em capitanias hereditárias com o objetivo de facilitar a administração da colônia, feita pelos donatários, que por sua vez, estimulavam a ocupação territorial pela concessão de sesmarias. Assim, impregnado de forte paternalismo, repetia-se no Brasil o modelo feudal europeu de ocupação do solo.
A miscigenação física e cultural, no período colonial, criava sua própria dinâmica social. Havia insatisfações generalizadas em todas as classes sociais. A elite dos engenhos começava a reclamar da intensa fiscalização e crescente cobrança de impostos feita pelos representantes da Coroa Portuguesa, pois a administração colonial tinha, como seu principal objetivo, promover a máxima exploração econômica para favorecer o enriquecimento lusitano. Assim, os maiores investimentos feitos em terras tupiniquins visavam proteger o território de invasões estrangeiras, haja vista a cobiça de algumas nações europeias pelas propagadas riquezas tropicais.
O visível acúmulo de riqueza pelos senhores de engenho conferia-lhes grande prestígio regional, passando a desempenhar papel de autoridade local, com poderes autoimputados, para ditar normas, julgar e punir subalternos, muitas vezes de forma pessoal e cruel. Esse poder instituído nos engenhos servia para conter as tensões sociais com escravizados e para equilibrar a divisão de poder entre senhores e representantes da Coroa.
O surgimento de uma classe social dominante, encabeçada pelos senhores de engenho, mobilizou a Igreja Católica para expandir sua presença no entorno dessas unidades produtivas, cuja configuração incluía a casa-grande, a senzala, a casa do engenho e a capela. Essa aproximação do poder eclesiástico com o poder econômico dos senhores de engenho possibilitou a criação de novos conventos, para formar contingente de religiosos e fornecer educação formal aos filhos dessa elite nascente.
Vale registrar que, ocasionalmente, alguns jovens humildes também eram aceitos para receber formação nesses centros educacionais. A aproximação da Igreja Católica com o senhorio produziu uma malha social com significativa representação política perante a administração do Brasil Colônia. Essa força política iria, futuramente, desembocar no sistema político conhecido como “coronelismo”.
Pela literatura, música e culinária
No início do século 20, foram produzidas as mais significativas obras literárias brasileiras ambientadas no mundo dos engenhos de açúcar. Essa honra coube a dois grandes escritores paraibanos: José Américo de Almeida, com o romance A Bagaceira, e José Lins do Rego, com a trilogia iniciada pelo romance Menino de Engenho. A leitura dessas obras possibilita-nos realizar um mergulho profundo no ambiente íntimo dos engenhos.
Quando esses livros foram escritos, não mais existiam escravizados nem senzalas, mas suas páginas ainda trouxeram, como que preso no ar, o aroma de suor do oprimido, o qual continuava presente na pele do trabalhador rural assalariado e do meeiro. A mão de obra rural continuou na labuta, sob frágil proteção trabalhista, até conseguir que seus direitos fossem assegurados por lei. Essa categoria de trabalhadores ainda seguiria lutando pela posse da terra, outrora doada para grandes proprietários e negada àqueles que arduamente lavoraram, para produzir a maior riqueza nacional. Essa insatisfação gerou a luta dos camponeses, que mais tarde revelar-se-ia no movimento dos “sem-terra”.

- Acima e ao lado, imagens do Engenho Corredor, no município de Pilar (PB), onde Zé Lins passou a sua infância
As mais remotas notícias da história da humanidade dão conta de manifestações culturais presentes em todas as civilizações, atestando que é quase impossível viver sem lazer e sem expressão da arte. No mundo dos engenhos, não seria diferente. Os senhores promoviam suas festas de salões e os escravizados reuniam-se ao ar livre, para cantar e dançar. Foi nesse espaço que surgiu a capoeira, disfarçada de jogo. Essa manifestação cultural foi uma das mais peculiares formas de luta e resistência, que permitiu aos cativos se defenderem e preservarem sua cultura.
A música popular brasileira incorporou os ritmos africanos de tal forma que não é possível desassociar uma coisa da outra. No samba e na batucada, essa influência é gritante, mas podemos encontrar a matriz rítmica africana em quase todas as pulsações da música popular. Está no sangue e na batida do coração brasileiro.
No paladar, encontra-se uma singular contribuição da presença africana nos engenhos: a tradicional feijoada nasceu na cozinha dos escravizados, que aproveitavam restos de carnes e cozinhavam junto ao feijão. Outro prato nordestino muito conhecido, o baião de dois, também teve origem semelhante. E o que dizer do cuscuz? Essa iguaria parece ser uma junção do fazer culinário indígena, árabe e africano. A culinária elaborada na cozinha dos escravizados também incluía sofisticados pratos para oferendas religiosas. A abundância de açúcar, melaço e da própria rapadura inspirará todo tipo de sobremesa, como as cocadas, o pé de moleque e os manjares à base de coco, açúcar e gema de ovos, que eram servidos na mesa dos engenhos nordestinos.
A cachaça, que atualmente é um produto emblemático do Brasil, surgiu nos engenhos, de forma acidental, a partir de um resíduo da produção do açúcar, um caldo chamado de “cagaça”. Os escravizados descobriram que esse caldo ao fermentar produzia uma bebida alcóolica que eles consumiam. Depois a “cagaça” passou a ser destilada e apreciada por toda a população. A legislação brasileira define a cachaça como uma bebida típica, que segue critérios específicos de produção. Em 2016, ela foi declarada patrimônio histórico e cultural nacional. Atualmente, a cachaça paraibana ocupa lugar de destaque no cenário nacional e vem colecionando premiações no país e no exterior.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 7 de dezembro de 2025.