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Resgate

Por dentro de uma relíquia histórica

publicado: 22/12/2025 09h46, última modificação: 22/12/2025 09h46
Ao contrário da maior parte das publicações que fazem a história oficial, obra Epitome de História da Paraíba para uso das escolas primárias não se limita ao registro de “triunfalismos invasores”
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Memória do cronista e jornalista Gonzaga Rodrigues sugere a reedição de livro raro sobre a história do nosso estado | Ilustração: Bruno Chiossi

por Ademilson José (Especial para A União)*

A memória do jornalista e cronista Gonzaga Rodrigues realmente não é normal. Acho que, para nós que militamos e que precisamos conhecer a história da nossa imprensa, ela chega a ser muito mais importante que o Google. É mais precisa, mais perto da gente. E não apenas da imprensa, mas da história da nossa Paraíba, tão cheia de equívocos e omissões, destacadamente quando se trata do distante período colonial.

Destacamos as nossas origens porque foi justamente sobre aqueles velhos tempos que, recentemente, o nosso Gonzagão andou clareando nossas leituras, nossas pesquisas e nossos conhecimentos. Na verdade, ele nos ajudou a resgatar um livro que a Paraíba nunca deveria ter esquecido, nunca deveria ter parado de reeditar e jamais deveria ter deixado de disponibilizá-lo em nossas escolas e livrarias.

Se puxamos pela memória do nosso cronista-mor, é porque foi na inauguração do museu do Palácio da Redenção — o Museu de História da Paraíba, em João Pessoa — que, ciente de que andamos estudando nossas origens e, sobretudo, o Brasil-holandês, Gonzaga nos chegou com essa indicação na ponta da língua. Sem anotação nenhuma, ele nos relatou o nome do livro, o nome completo do (para nós, desconhecido) autor e mais: quando, porque e como a obra foi lançada, no começo do século passado.

A obra é Epitome de História da Paraíba para uso das escolas primárias — por Manuel Tavares Cavalcanti. E achando que seria pouco, disse mais: tudo o mais que encontramos na capa — que o autor foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP) e que a elaboração e publicação da obra fizeram parte de uma determinação do então governador da Paraíba, João Pereira de Castro Pinto (1912–1915).

Mas o melhor do livro não são esses toques de relíquia e raridade. Não. O melhor mesmo é seu conteúdo. Como nos dedicamos mais às origens da Paraíba, o livro do Manuel Tavares Cavalcanti caiu como uma bola de ouro em nossas pesquisas. O livro é completo e, ao contrário da maior parte das publicações que fazem a nossa história oficial e a nossa historiografia tradicional, não se limita ao registro de “triunfalismos invasores”.

Trata dos povos originários detalhando todas as etnias que habitavam o território da Paraíba antes das invasões em 1500, assim como das relações de alianças e resistências indígenas aos longo dos primeiros séculos. Com a mesma riqueza de detalhes, trata também do período do Brasil-holandês (1634–1654).

Prova disso é o fato de somar informações que não encontramos nessa história que poderíamos chamar de História “portuguesa” da Paraíba e do Brasil e não de História da Paraíba e do Brasil. Sobre a ocupação neerlandesa no Nordeste brasileiro, o livro traz detalhes que não encontramos nem mesmo no melhor da literatura do Brasil-holandês.

Por exemplo: quando trata da ocupação na Paraíba, no final de 1634, Manuel Tavares Cavalcanti não se limita a destacar os figurões holandeses. Conta que, entre esses, esteve uma figura que foi fundamental na conquista do território paraibano e que começou a articular os ataques um mês antes da ocupação, marcando presença, inclusive em Mamanguape, Domingos Fernandes Calabar:

“Em Novembro Calabar o temível mameluco que tanto os auxiliou (aos holandeses) e tão bem os conduziu contra os portuguezes, faz pessoalmente uma sortida contra Mamanguape. Conseguiu aprisionar uma caravela e um patacho meio carregado de assucar [...]” [sic] (pág. 42). E, mais adiante, relatos também sobre a chegada pela enseada do Rio Jaguaribe, situada naquele espaço seco que temos hoje na divisão entre os bairros do Bessa e Intermares.

“[...] Tendo partido do Recife a 24 de novembro de 1634, só a 4 de Desembro appareceram ao sul do Cabo Branco. No mesmo dia dão desembarque na enseada do Jaguaribe. Antonio de Albuquerque, avisado, sae-Ihes ao encontro mas não logra obstar-lhde a marcha, pois, quasi desbaratado, deixa em poder do inimigo tres prisioneiros, entre os quaes, o portuguez Bento do Rego Beserra, um dos principaes da Capitania que depois que passou para o inimigo, prestando-Ihe informações muito utéis [...]” [sic] (pág. 44).

Outro registro marcante do livro, registro igualmente muito esquecido pela História “portuguesa” da Paraíba e do Brasil, diz respeito ao famoso 13 de janeiro, quando os holandeses trocam o nome de “Filipeia” por “Frederica” e estabelecem uma série de medidas, entre as quais a liberdade religiosa que, mesmo relativa, proporcionava uma realidade bem diferente da ferrenha perseguição que os portugueses mantinham contra os judeus.

“Emfim a 13 de Janeiro lavra-se uma ata na qual se consagram definitivamente quaes as concessões que o Principe de Orange, os Estados Geram; e a Companhia das Indias Occidentaes fazem aos moradores da Parahiba. Entre outras medidas, constaram as seguintes: garantias à liberdade de consciência, ao culto e serviço catholico; segurança de propriedade, mediante os mesmos tributos cobrados anteriormente; protccção legal aos tratos e negocios; isenção aos moradores de tomarem armas contra tropas vindas da metropole; direito de recorrerem juízes invocando a legislação portugueza, nas questões entre si, etc.” [sic] (pág. 50).

Nada contra os livros dos historiadores mais conhecidos como Horácio de Almeida, Capistrano de Abreu e tantos outros, nem muito menos contra os contemporâneos mais badalados nas livrarias, mas, apesar de dirigido às escolas primárias, o livro de Manuel Tavares Cavalcanti é muito mais completo e detalhista que todos eles. Não poderia ter sido relegado ao esquecimento e ao abandono editorial como tem sido até hoje.

Pelo seu valor, a obra deveria ser citada e lembrada, conforme o próprio Gonzaga Rodrigues fez no domingo passado (14), em seu espaço deste jornal. Até mesmo por ser uma obra bancada pelo poder público, deveria ser reeditada, não faltar em nossas livrarias e, como determinou o governador Castro Pinto, não faltar em nossas escolas públicas e particulares.

Enquanto isso não acontece, deixamos aqui mais um outro exemplo que nos surpreendeu no livro. Apesar de esquecido e desconhecido pela Paraíba, especialmente pelo poder público e pelo sistema educacional, a relíquia de Manuel Tavares Cavalcanti é conhecida demais na internet, pois foi só colocar as referências de título e nome de autor, para que o Google me oferecesse um PDF completo e gratuito.

E é isso que quero terminar dividindo aqui. Quem não quiser esperar por reedições, é só abrir o Google e digitar o que Gonzaga me trouxe na ponta da língua: “Epitome de História da Paraíba para uso das escolas primárias — por Manuel Tavares Cavalcanti”. Ou, no caso, acessar o QR Code acima.

Como eu, vocês vão ver que, com ajuda da memória de Gonzaga e do livro de Manuel Tavares, fica bem mais fácil estudar a História da Paraíba.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de dezembro de 2025.