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Ruínas tombadas

publicado: 15/09/2025 09h28, última modificação: 15/09/2025 09h28
Em Cabedelo, Igreja do Almagre é um local para o entendimento do passado colonial paraibano
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Condição atual da fachada escorada do templo | Foto: Roberto Guedes
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A vegetação toma os elementos arquitetônicos, como a vieira, símbolo utilizado pelo cristianismo
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Registros do lugar nos anos 1920, feita pelo pesquisador e cineasta Walfredo Rodriguez (1893–1973) | Foto: Walfredo Rodriguez/Arquivo Iphan
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por Marcos Carvalho*

A vegetação cobre o que restou das pedras calcárias que, há mais de três séculos, sustentaram a Igreja Nossa Senhora de Nazaré do Almagre, no município de Cabedelo. Situadas à beira-mar, espremidas entre casas de veraneio localizadas nos limites da Praia do Poço e da Ponta de Campina, as ruínas do templo, que contam parte da história da colonização portuguesa na Paraíba, resistem escoradas por madeira que amparam algumas paredes que ainda se mantêm de pé.

“Quando eu era rapazinho, ia lá com a minha turma, e a gente gravava de canivete ou com uma faquinha o nome das namoradas nas pedras, fazendo corações. O charme era isso. A igreja já era abandonada e assim ficou, até que, aos poucos, foram levando tudo”, confessa o médico aposentado de 88 anos, José Juvêncio de Almeida Filho, que também se denomina um veranista histórico da Praia do Poço. A ele foi confiada, há cinco anos, pelo pároco da área, a tarefa de recuperar, por meio de documentos, fotografias e relatos orais de antigos moradores, um pouco da história do local.

O livro Desde os tempos de Almagre foi encomendado como parte das comemorações pelo centenário da Capela de Nazaré, construída em 1920, pelos fiéis da Praia do Poço, quando a Igreja do Almagre já se encontrava em ruínas. Daquela época, o médico aposentado relembra uma procissão de pedras para construir um pedestal que abrigaria a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, retirada pelos católicos com receio de que ela desaparecesse da antiga igreja.

“Essa procissão consistia em cada um, de acordo com a sua capacidade de suportar peso, trazer uma pedra da Igreja até o local onde seria erguido o pedestal. Quando houve a inauguração da Capelinha do Poço, a santa foi colocada lá”, conta. Os relatos sobre a primitiva imagem envolvem muitas reviravoltas, até que, segundo Juvêncio, mais recentemente, alguns antigos moradores conseguiram identificá-la como parte do acervo do Centro Cultural São Francisco, no Centro de João Pessoa.

Para narrar essas e outras histórias em torno da Igreja Velha, como era chamado pelos moradores do Poço o templo que hoje está em ruínas, o médico contou com o auxílio de Antonio Smith, um defensor do local que tentou organizar, sem sucesso, uma associação de amigos para lutar pela revitalização das Ruínas do Almagre. O acesso ao local continua limitado à população, restrito a quem se desafia a enfrentar o matagal ao lado da placa indicativa do monumento histórico, na Via Litorânea de Cabedelo.

Segundo pesquisa da historiadora Carla Mary, a Igreja do Almagre já constava em representações cartográficas do século 17, pois sua posição geográfica era estratégica para observação militar, de onde se podia divisar parte do acesso à foz do Rio Paraíba até a ponta do Cabo Branco. O nome “almagre”, segundo a pesquisadora, é de origem árabe e significa “argila avermelhada”, mas, no contexto colonial brasileiro, refere-se aos arrecifes avermelhados encontrados pelos portugueses na costa nordestina. 

Registros do lugar nos anos 1920, feita pelo pesquisador e cineasta Walfredo Rodriguez (1893–1973) | Foto: Walfredo Rodriguez/Arquivo Iphan

“A posição privilegiada de Nossa Senhora de Nazaré do Almagre, numa praia da qual se podia perceber qualquer aproximação marítima a partir do Litoral Sul e, mais ainda, que estava resguardada de um eventual desembarque inimigo em suas proximidades, por ser protegida pelos arrecifes avermelhados que acompanham a linha costeira, só reforça o entendimento de que havia uma ligação intrínseca entre a “máquina” de conquista lusitana e o poderio eclesiástico”, argumenta a historiadora.

Mesmo em ruínas, ainda é possível identificar elementos arquitetônicos que remetem à riqueza da construção, a exemplo da vieira, símbolo recorrentemente utilizado pelo cristianismo para representar a peregrinação rumo ao céu. Não é possível reconhecer a fachada do templo, mas, a partir de algumas fotos do início do século passado, Carla Mary sugere que seus traços remetem à sobriedade dos primeiros projetos do barroco italiano.

Ao longo dos séculos, a Igreja de Nossa Senhora do Almagre teria estado sob a coordenação de, pelo menos, três ordens religiosas: primeiro os jesuítas, depois os franciscanos e, finalmente, os beneditinos. Apesar das discordâncias dos historiadores sobre as datas, as referências apontam que a presença religiosa no local buscou a catequese dos indígenas até a invasão holandesa, quando se tem um silenciamento de mais de 100 anos nas documentações sobre o aldeamento. Cartografias e documentos do século 18 que fazem referência à Igreja de Nossa Senhora de Nazaré chamam o local de Utinga.

A historiadora Anna Pontes pesquisou sobre as Ruínas do Almagre tanto na graduação quanto no mestrado, e destaca o valor patrimonial do local onde, possivelmente, já em 1589, existia uma igreja de taipa. “É um local imprescindível para o estudo e para o entendimento do passado colonial paraibano. Além disso, é também um monumento importante para a história do Bairro do Poço, um espaço de sociabilidades e de memórias para a população, o que pode ser percebido em iniciativas locais para a preservação das ruínas”, esclarece a pesquisadora.

Ruínas patrimoniais

Apesar de constar numa das primeiras listas de bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1938, as Ruínas do Almagre ainda esperam por algum tipo de intervenção que tornem a memória do lugar acessível a toda a população. Na leva de monumentos tombados naquele ano, havia mais duas ruínas da Paraíba: a Casa da Pólvora, em João Pessoa, e o Forte Velho, também em Cabedelo.

Mas por que tombar algo que já está em ruínas? O que ainda pode ser feito daquilo que restou de monumentos históricos importantes, como a Igreja de Nossa Senhora de Nazaré do Almagre? No senso comum, ruínas estão associadas a edifícios que se encontram em avançado estado de degradação e destruição, portanto faz supor que a preservação seja diferente de bens conservados. A designação de tombamento, no entanto, representa o reconhecimento e a exigência de algum tipo de ação, como defende a historiadora Anna Pontes.

“As Ruínas do Almagre, enquanto ruínas patrimoniais — monumentos sem a forma e sem o uso originais, que aludem à construção original e ao próprio processo de arruinamento, tombadas e valorizadas na condição fragmentada em que se encontram —, precisam de ações de conservação urgentes e contínuas. Nesse sentido, a estabilização e a consolidação das estruturas são essenciais para que a ruína mantenha-se conservada como está, sem novos arruinamentos, e para que a sua visitação seja segura, sem riscos de acidente. A valorização do entorno da ruína é outro fator indispensável para a sua compreensão contextualizada”, sugere a pesquisadora.

Uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal (MPF), em 2011, para recuperar, prevenir e resguardar a integridade física e cultural das Ruínas do Almagre, depois de 13 anos, concluiu pela condenação dos réus (proprietários particulares da área, município de Cabedelo e Iphan) a adotar medidas para conservação total das Ruínas do Almagre e garantir o franco acesso público ao bem e à praia. Na sentença proferida pela juíza da 3ª Vara Federal da Paraíba, Cristina Garcez, o Iphan foi obrigado a apresentar projeto de ações emergenciais capaz de garantir a estabilidade do edifício e a preservação dos seus aspectos culturais e arquitetônicos, bem como a adotar as medidas necessárias para executá-las.

Em 2016, o órgão realizou serviços de escoramento, limpeza, cercamento, drenagem e iluminação da área. O projeto previa a estabilização definitiva das ruínas e uma análise criteriosa das condições da estrutura e dos elementos remanescentes, de modo a permitir a reconstrução parcial do templo. Também estava prevista uma consulta pública para definir a destinação mais adequada para o local, seja como espaço religioso ou para visitação turística. Até o fechamento desta reportagem, a Superintendência do Iphan da Paraíba não respondeu aos nossos contatos para esclarecer sobre a continuidade ou o início de novos projetos.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 14 de setembro de 2025.