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Tradição secular

Subindo ao céu com todas as preces

publicado: 02/06/2025 10h03, última modificação: 02/06/2025 10h04
Considerado Patrimônio Cultural da Paraíba desde 2019, ritual da queimação das flores preserva as identidades cultural e religiosa da população rural do estado
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Nossa Senhora adornada de flores carrega um forte apelo à preservação da herança dos antepassados por meio de seus ritos, benditos e gestos; Celebração tem crianças vestidas de anjos: queima vira fumaça e sobe ao céu com todos os pedidos e os agradecimentos feitos pelo povo | Ilustração: Tônio

por Marcos Carvalho*

Na tradição católica brasileira, o mês de maio é dedicado a Nossa Senhora. Famílias, comunidades e paróquias reúnem-se durante os 30 dias para fazer orações e súplicas à mãe de Jesus, especialmente com a recitação do terço, e, no último dia, celebrações especiais coroam as comemorações. Em várias regiões da Paraíba, uma tradição religiosa popular marca ainda mais esse momento: a queimação das flores que, ao longo do mês, são colocadas no altar da santa. Desde 2019, o ritual é considerado Patrimônio Cultural da Paraíba.

No Sítio Caiçara, município de Dona Inês, no Brejo paraibano, o líder comunitário e estudante de Letras, Robson da Silva, conta que o mês de maio é o que mais estimula a participação dos fiéis. Dedicada a São Luiz Gonzaga e Nossa Senhora das Dores, a pequena capela da comunidade recebe, a cada noite, famílias que são homenageadas, chamadas de noitários, quando se reza do terço e são ofertadas velas, fogos de artifícios e flores. “Essas flores são as mesmas que, no dia 31 de maio, serão queimadas”, relata o jovem, que faz questão de preservar a tradição que recebeu da avó.

A comunidade se prepara com antecedência para o momento celebrativo, enfeitando a capela com bandeirinhas, coroas e palmas feitas de papel de seda. À noite, a celebração começa com a entrada de crianças vestidas de anjos que, ao fim da liturgia, coroam a imagem de Nossa Senhora. A seguir, saem em procissão até a frente da capela carregando as flores em um saco, no qual estão os ramalhetes que serão queimados na fogueira. “O pessoal espera ansioso por esse dia. Antes mesmo de começar o mês de maio, muitas crianças já perguntam se vão ser chamadas para ser anjinhos”, comenta Robson. Por questões de segurança, as crianças não jogam as flores na fogueira, mas as entregam aos adultos para completarem o ritual.

Cada momento é acompanhado por um bendito, puxado por um cantor e repetido por todos. Quando saem da capela os versos dizem: “Saímos nós todos do pé do altar / Com as belas flores que vão se queimar”. Ao chegar no pátio, todos se colocam em volta da fogueira e o trecho do canto explicita: “Essa fogueirinha será o lugar / Das belas flores que vão se queimar”. À medida que se jogam as flores, se canta: “Queimemos e cantemos com muita alegria / Queimemos as flores do mês de Maria”. E ao fim, a despedida: “Adeus, adeus ao nosso Senhor / Até para o ano, se nós vivos for”.

Além das flores, também são queimadas as lanterninhas para as velas, coroas, palmas e bandeiras. Tudo se conclui com uma grande salva de palmas a Nossa Senhora, seguida de queima de fogos. “É um momento de fé e devoção que movimenta muito a comunidade. Se observar bem, tem algo misterioso por trás”, conclui o jovem católico, impressionado com a força da tradição popular, que se repete em outras comunidades e até em algumas casas, onde as famílias fazem questão de renovar a prática religiosa. Para facilitar a participação dos fiéis, a comunidade do Sítio Caiçara realiza a celebração na noite deste domingo, 1º de junho.

Identidade cultural

Há 20 km do Sítio Caiçara, outra comunidade católica do município de Dona Inês também mantém a tradição. No Sítio Oiticica, as novenas do mês de maio e a queima das flores aconteciam nas residências dos moradores desde a década de 1970, quando a capela da comunidade ainda não tinha sido construída. Para o professor de História Janielson Tomaz, que abordou a tradição mariana em seu trabalho de conclusão de curso, o catolicismo popular se desenvolveu nessas regiões de Zona Rural em razão do distanciamento da igreja oficializada.

Além da dimensão religiosa, Janielson defende que os encontros de maio também favoreciam a socialização dos moradores ao reunir amigos e vizinhos para celebrar em ambiente familiar, partilhar experiências, divertir-se e fugir da realidade de sofrimento. “Para os devotos que acompanham as novenas do mês de maio, na mente deles, não há uma divisão entre festa religiosa e profana, porque tudo está ligado como uma coisa única que proporciona alegria e diversão”, avalia.

Além de descrever o ritual da queimação das flores, o professor destaca a relação simbólica da fogueira com outras culturas que se utilizam do fogo para espantar maus espíritos. No catolicismo popular, no entanto, a fogueira pode remeter à passagem bíblica do nascimento de João Batista — Santa Isabel teria combinado esse sinal para avisar a Nossa Senhora, sua prima, que a criança teria nascido — ou ainda à elevação de pedidos a Deus, por intercessão da Virgem Maria. “O ato de queimar as flores funciona como que o ‘incenso dos simples’, pois tudo vira fumaça e, assim, sobe ao céu com todas as preces, os pedidos e os agradecimentos feitos pelo povo”, esclarece.

A tradição secular da queimação das flores mantém as identidades cultural e religiosa da população rural paraibana e carrega um forte apelo à preservação da herança dos antepassados por meio de seus ritos, benditos e gestos. Em razão disso, essa prática regional foi considerada como Patrimônio Cultural da Paraíba, por meio da Lei n° 11.532/2019.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 1° de junho de 2025.