O romance O Moleque Ricardo, o quarto publicado pelo escritor paraibano José Lins do Rego, foi escrito à mão, como era costume do autor, em uma espécie de “caderno de venda”. A reprodução de uma das páginas originais da obra, lançada há 90 anos, foi publicada na imprensa da época: “Letra miudinha, nervosa, compacta, ocupando as entrelinhas, sem deixar margem nem parágrafos”, dizia uma espécie de texto-legenda. “O Sr. José Lins escreve assim de um só fôlego, sem parar, suas histórias. Alguém já lhe disse que é espiritismo. Ele cai em transe e escreve como o Chico Xavier. José Lins do Rego riu baixinho. Sabe muito bem o romancista que não é espiritismo. É espírito, é talento de verdade”, detalhou a matéria.
O talento do escritor de Menino de Engenho já era reconhecido pela linguagem espontânea, “linguagem de conversa, surpreendida diretamente da vida”, mas isso não foi suficiente para poupá-lo de críticas que destacavam o viés político-ideológico de seu romance. Nos jornais da época, podem ser encontrados títulos de matérias como “Moleque Ricardo ou a Revolução entrando na consciência” (O Jornal–RJ, 11/8/1935) e “Moleque Ricardo não é comunista” (Diário de Pernambuco–PE, 28/6/1936). O livro foi considerado por muitos uma denúncia social dos dramas que o proletariado vivia, traduzidos para a linguagem literária.O narrador de O Moleque Ricardo soube colocar no imaginário de alguns personagens a esperança da revolução comunista, que os mobilizava em greves e protestos. Numa das críticas ao romance, Jorge Amado diz que o moleque da bagaceira, tratador de cavalos e moço de recado “não é um simples pretexto na história das greves que o romancista narra. A greve é como que o ambiente, não chega a ser propriamente o personagem. O personagem é mesmo o moleque Ricardo em quase todo o volume, até que, no fim, o negro Lucas toma conta do romance para nos dar aquele extraordinário fecho do livro, o pai de santo saindo da macumba para a revolução ou melhor levando a macumba para a revolução”.
Sociólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Cauby Dantas desenvolveu pesquisas sobre os diálogos da obra do romancista paraibano com a sociologia de Gilberto Freyre. Segundo ele, os matrizes temáticos dos romances de José Lins do Rego representam um rico desdobramento estético do ideário regionalista nordestino formulado por Freyre. No caso do romance O Moleque Ricardo, apesar do próprio escritor colocá-lo como parte da série de cinco livros que denomina Ciclo da Cana-de-Açúcar, a obra se distingue das demais pela ambientação e pelos temas tratados.
“É um romance que tem um conteúdo político muito acentuado em relação aos anteriores. José Lins opera um deslocamento do mundo rural dos engenhos para a proletarização urbana. O moleque Ricardo, um menino criador de cavalos do Engenho Santa Rosa, foge e passa a morar no Recife. Na metrópole regional, o personagem vai trabalhar numa padaria e, em vez da figura do senhor da casa-grande, com a qual ele estava acostumado, vai conhecer a figura do patrão e se deparar com as relações interpessoais mercantis, em que tudo é pago. No ambiente urbano, ele encontra a realidade capitalista e também o movimento operário”, explica Cauby.
O docente destaca que a cidade é representada de forma muito hostil e negativa. O narrador coloca o personagem diante de situações de miséria e fome, carestia e exploração, a ponto de chegar a ter saudade da vida no engenho, mesmo com os maus-tratos sofridos. Para o sociólogo, passados quase um século de sua primeira publicação, a obra ainda se mostra atual e interessante, por refletir bem o choque entre o campo e a cidade, assim como as sociabilidades desses dois ambientes e as problemáticas em torno das relações entre o capital e o trabalho.
“A obra de José Lins é uma expressão literária muito forte das nossas raízes históricas agrárias e nos ajuda a pensar sobre o Brasil contemporâneo, que ainda é muito contaminado por correntes autoritárias marcadas pelas reminiscências escravocratas, misóginas, racistas, desiguais. E O Moleque Ricardo é interessante para pensar problemas inerentes ao mundo urbano, como a carestia, a violência policial, o movimento político, a proletarização urbana, a greve, a demagogia política, a corrupção. Esses são temas que, infelizmente, ainda estão na ordem do dia”, afirma Cauby.
- Na edição de 6 de outubro de “O Jornal” (RJ), reprodução do original do livro escrito à mão, com “letra miudinha, nervosa, compacta”
Cauby Dantas faz questão de pontuar que não é crítico literário, mas reconhece traços autobiográficos de José Lins no romance. Como bom memorialista, o escritor teria recuperado um pouco de seu período de militância estudantil, quando estudava na Faculdade de Direito do Recife, presente na militância operária do personagem Ricardo. A visão desiludida da cidade também pode ser pensada a partir das mudanças geográficas do autor, que chegou a morar no interior de Minas Gerais, antes de viver na capital alagoana e, por fim, no Rio de Janeiro, onde escreveu o romance urbano.
Em João pessoa, a gerente do Museu José Lins do Rego, Maria do Carmo Diniz, considera que a obra, que está completando 90 anos, ainda se mantém relevante. Ela destaca que o personagem Ricardo aparece em segundo plano no primeiro romance do escritor, mas assume o papel de protagonista na obra publicada em 1935.
“É um personagem negro do engenho, que chega à cidade e vai lutar por uma vida melhor. A obra toca em um ponto muito importante, que é o racismo, muito forte para a época. O Moleque Ricardo não recebeu nenhum prêmio, como Menino de Engenho ou Fogo Morto, mas é um grande romance que precisa ser redescoberto pelos leitores. José Lins tem uma escrita muito fácil e essa obra ainda é bastante atual pelas questões sociais que aborda e são bem evidentes ainda hoje”, frisa a gestora.
O museu dispõe de alguns exemplares da obra, desde a segunda edição, publicada em 1936, até traduções para o romeno e o alemão. No acervo documental, uma das pastas guarda recortes de jornais organizados pelas filhas do romancista, que reúne matérias e críticas literárias da época em que o livro foi lançado. Para marcar noves décadas do romance, a gestora planeja realizar ações que estimulem sua leitura, sobretudo das novas gerações que frequentam o espaço por meio de visitas guiadas pelos professores.
O Museu José Lins do Rego fica situado no subsolo da rampa 4 do Espaço Cultural e o seu acervo contém livros, móveis, fotos, documentos e objetos relativos ao escritor paraibano e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Recebe visitas de segunda a sexta-feira, das 8h às 12h e das 13h às 17h, e aos sábados, domingos e feriados, das 10h às 16h.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 28 de setembro de 2025.