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Figura histórica

Um imperador regido pela curiosidade

publicado: 01/12/2025 09h25, última modificação: 01/12/2025 09h25
Bicentenário de nascimento resgata a figura de D. Pedro II para confrontar e repensar a própria história do Brasil
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Imperador com o traje majestático completo, na visão do pintor paraibano Pedro Américo (1843–1905) | Imagem: Reprodução/Museu Imperial

por Marcos Carvalho*

Ele foi o sétimo filho do casal imperial, D. Pedro I e D. Maria Leopoldina, mas tornou-se herdeiro da coroa com a morte dos irmãos mais velhos, Miguel e João Carlos, e a determinação da Constituição de que mulheres só assumiriam o trono caso não houvesse nenhum homem na linha sucessória. Com um ano de idade, perdeu a mãe e, aos cinco, tornou-se príncipe regente com a abdicação do pai ao trono, que retornou a Portugal. O monarca que governou o Brasil por quase meio século e tem nome longo — Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga — passou pela história como D. Pedro II, o Magnânimo, e terá seu bicentenário de nascimento comemorado na próxima terça-feira (2).

O professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Leandro Garcia, tem pesquisado documentos históricos, como os diários do imperador brasileiro, e avalia a infância do príncipe como triste e solitária. Apesar de viver num palácio, os únicos familiares eram as duas irmãs, as princesas D. Francisca e D. Januária. 

Pesquisa do professor Leandro Garcia (UFMG) resultou no livro “Dom Pedro II e a Cultura Hebraica”, sobre a viagem que o regente fez ao Oriente Médio, em 1876 | Imagem: Divulgação/Ed. Francisco Alves

“O protocolo palaciano de acesso ao príncipe era muito complicado e quase ninguém tinha acesso a ele, a não ser as irmãs e os preceptores. Então, num sentido mais amplo, penso que a infância e a adolescência dele, ao mesmo tempo que tinha todas as facilidades de uma vida palaciana, foi marcada por uma formação intelectual muito forte e muito rígida, que, como pessoa e como ser humano, era um tanto solitária”, destaca. 

A formação do futuro imperador era, de fato, a preocupação de seus preceptores, entre os quais  José Bonifácio de Andrada e Silva. Para Garcia, os estudos aprofundados das línguas clássicas, como latim e grego, da literatura francesa e portuguesa, assim como da história, das ciências, da matemática e da astronomia moldaram muito a personalidade do jovem imperador e fizeram dele, para além de um monarca, também um grande intelectual de sua época.

Um dos documentos que permite essa afirmação é o diário escrito por ele ao longo de quase 50 anos e que é, inclusive, reconhecido como patrimônio cultural da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Leandro Garcia considera essa uma das fontes mais importantes para pesquisas sobre a história do Brasil, ainda que seja necessário considerar que se trata do olhar de um imperador.

“Ele é regido por essa coisa tão humana que se chama ‘curiosidade’. Isso é algo muito forte nele. E ele vai registrar no diário tudo que ele encontra e que concebe como importante para a história do Brasil e a identidade brasileira”, explica o pesquisador. Essa característica fica ainda mais evidente nas anotações das viagens, sejam nacionais ou internacionais.

As anotações das viagens pelo território brasileiro tinham motivação política — conhecer e afirmar sua autoridade como chefe de Estado —, mas também revelam o profundo interesse de D. Pedro II pela história de cada província e pelos marcos históricos locais, como é o caso da ocupação holandesa na Região Nordeste. Nas viagens ao exterior, a motivação era, sobretudo, conforme aponta Garcia, conferir de perto aquilo que, ao longo da vida, ele estudara nos livros. “Um dos maiores interesses dele, por exemplo, era sobre o Egito. Então, nas duas vezes que ele foi ao Egito, fez questão de conhecer a história, a literatura e conversar com escritores e cientistas locais”, pontua.

Na viagem que realizou ao Oriente Médio, no fim do ano 1876, o imperador Pedro II esteve em territórios que hoje correspondem à Síria, Líbano e Israel. Os registros dessa visita, especialmente à Terra Santa, constituem o objeto específico da investigação de Leandro Garcia, cujos resultados foram reunidos no livro Dom Pedro II e a Cultura Hebraica, lançado recentemente pela Editora Francisco Alves, com o apoio da Fecomercio-SP. O escritor surpreendeu-se com a quantidade de fotografias e reportagens em jornais locais da época sobre a passagem do monarca brasileiro pelas terras palestinas e decidiu investigar também os registros de viagem e as correspondências trocadas, inclusive pela imperatriz, D. Tereza Cristina, que o acompanhou na ocasião.

“D. Pedro II é a figura mais pesquisada na ciência brasileira e isso é dito pela Capes. Então, o bicentenário de uma das personalidades mais importantes da nossa história é ocasião para fazer uma avaliação crítica não só das coisas positivas, mas também daquilo em que ele não avançou. Esse bicentenário, de certa forma, resgata a figura dele, mas resgata, principalmente, e nos faz confrontar e repensar a própria história do Brasil”, defende.

Balanço do mais longo governo brasileiro

Leandro Garcia discorda das tendências de movimentos neomonarquistas de uma “quase canonização” da figura de D. Pedro II e prefere adotar uma postura crítica, considerando-o como homem do seu tempo que teve erros e acertos ao longo de seu governo. As principais ressalvas do docente referem-se a não criação de uma universidade — o Ensino Superior era fragmentado em faculdades — e ao retardamento da abolição da escravatura.

“Pelo intelectual que ele foi, teria condições suficientes e até de sobra para criar a primeira universidade do Brasil. Ele era um homem culto e acadêmico, de um profundo conhecimento; e, em todas as viagens que fazia para o exterior, os primeiros lugares que visitava eram as universidades locais”, argumenta o pesquisador. Ele atribui parte do atraso do Ensino Superior brasileiro à ausência de um conceito de universidade e lembra, por exemplo, que a pós-graduação só se desenvolveu no país a partir da segunda metade do século passado.

Em relação à abolição da escravatura, embora reconheça que essa decisão não passasse apenas pela vontade pessoal do monarca e dependesse também de um parlamento conservador, formado em grande parte por donos de fazendas e senhores de escravizados, Leandro Garcia avalia que tanto D. Pedro II como a Princesa Isabel, com as habilidades políticas que possuíam, poderiam ter avançado mais nessa causa. A ausência de ação para antecipar esse processo fez com que o Brasil passasse para a história mundial como um dos últimos países a libertar oficialmente a população escravizada.

Por outro lado, o professor faz questão de ressaltar o papel do imperador no incentivo à educação primária, com a construção de escolas, inclusive mistas, assim como à literatura brasileira. “Ele foi fundamental não só para impulsionar a pesquisa histórica brasileira, com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como também a literatura brasileira, porque ele financiava bolsas de estudo para vários escritores e poetas, assim como publicações de revistas e livros literários. Ele fez da cultura uma política de Estado e percebeu que nós tínhamos que ter uma identidade nacional, e essa é uma das maiores contribuições dele. Por isso, eu considero que ele é, realmente, um estadista”, salienta o autor.

Ocaso do imperador

Com o golpe de Estado que proclamou a República do Brasil, em 15 de novembro de 1889, D. Pedro II exilou-se na França, vivendo em hotéis modestos da capital até os seus últimos dias de sua vida. Num dos passeios costumeiros que fazia pelas margens do Rio Sena sem a proteção adequada para um ambiente de baixas temperaturas, contraiu um resfriado, que, em poucos dias, evoluiu para uma pneumonia e o levou a óbito, em 5 de dezembro de 1891.

Sepultado no Panteão dos Braganças, na Igreja de São Vicente de Fora, em Lisboa, as autoridades do governo republicano brasileiro recusaram-se a prestar qualquer manifestação oficial de pesar. No país, no entanto, foram vistas manifestações como comércios fechados, bandeiras a meio-mastro e tarjas pretas nas roupas de seus antigos súditos.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 30 de novembro de 2025.