Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia, e de vários filhinhos pálidos e tristes”. Assim começa a história de Jeca Tatuzinho, personagem-título da obra de Monteiro Lobato (1882-1948), lançada há 100 anos. Escrito para ensinar noções de higiene e saneamento às crianças, o livro infantil divide as comemorações do centenário com outra obra do autor, A caçada da onça, também publicada em 1924 pelo reconhecido escritor paulista.
Leitora de Monteiro Lobato desde os oito anos de idade, quando ganhou de presente de aniversário um “livrão” do autor, a escritora, pesquisadora e crítica literária Neide Medeiros Santos destaca que Jeca Tatuzinho adquiriu maior visibilidade quando apareceu no almanaque do fortificante Biotônico Fontoura, que, naquela época, era distribuído nas escolas brasileiras. A iniciativa é considerada por muitos, ainda hoje, a maior peça publicitária de todos os tempos no Brasil.
“Eu conheci na antiga escola primária este almanaque do Biotônico Fontoura com a história de Jeca Tatuzinho. Para combater a doença que vitimava o Jeca Tatu e o deixava indisposto para o trabalho, a ancilostomíase, na história aparece um médico que recomendava remédios do laboratório Fontoura e algumas medidas de higiene, como andar com botas, lavar as mãos. Com essas medidas adotadas, o Jeca ficaria curado dos vermes e iria adquirir coragem para o trabalho”, narra a escritora, que também é representante paraibana da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).
Em relação ao livro A caçada da onça, Neide Medeiros enfatiza a boa dose de humor e imaginação do autor para criar uma história cheia de aventuras. Como Monteiro Lobato gostava de burilar os textos e fazer modificações, com essa obra não foi diferente: na segunda edição, publicada em 1933, foi introduzido um novo personagem, o rinoceronte, que passou a fazer parte das caçadas e a obra mudou de nome, passando a se chamar Caçadas de Pedrinho.
Ao longo desses 100 anos, os personagens e as histórias dessas duas obras de Lobato expandiram-se e ganharam vida também em outros meios. Estrelado por Amácio Mazzaropi (1912-1981), Jeca Tatu estreou, nas telas dos cinemas, em 1959, uma década depois da morte de seu criador e seguiu fazendo sucesso até 1980. Mazzaropi atuou, produziu e dirigiu, ao todo, nove filmes. Já o personagem Pedrinho, neto da Dona Benta que já aparecia nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, fez grande sucesso nas séries para televisão, com destaque para as produzidas pela Rede Globo, primeiro entre 1977 a 1986, e mais recentemente de 2001 a 2006.
Apesar de reconhecer que Monteiro Lobato continua sendo lido e estudado nas universidades, a pesquisadora Neide Medeiros afirma que o autor já não desperta o mesmo interesse no público infantil como antigamente, fator que alguns críticos atribuem ao grande número de páginas que as publicações possuem. “O mundo moderno pede histórias mais curtas, mais acessíveis. Sente-se a necessidade de uma reformulação nas suas histórias, transformar capítulos em livros (o que já vem ocorrendo) e retirar o ranço racista e eugenista de suas histórias ou explicar para o público infantojuvenil o porquê do racismo e das ideias de supremacia branca”, esclarece.
Polêmico e genial
Nascido nos últimos anos do Brasil Império, na cidade de Taubaté, interior do estado de São Paulo, o ativista político e defensor do nacionalismo pode ser considerado tão genial quanto polêmico, e isso ainda hoje.
É Monteiro Lobato que inaugura, nas primeiras décadas do século 20, uma literatura infantil tipicamente brasileira ao procurar fugir dos estereótipos europeus e propor livros em que as crianças pudessem encontrar traços de nossa cultura popular. É também ele, no entanto, que não poupa críticas à pintora Anita Malfatti (1889-1964), durante a exposição na Semana de Arte Moderna de 1922, chamando o trabalho da artista de “resultado de uma deformação mental” e, mais tarde, acusado de comunista, teria seus livros queimados em praça pública.
As polêmicas envolvendo o escritor não pararam mesmo após mais de 70 anos de sua morte. As acusações de racismo e de eugenia a que se referiu a pesquisadora Neide Medeiros costumam ser identificadas nas atitudes da personagem boneca Emília, quando se referia à tia Nastácia, na obra do Sítio do Picapau Amarelo, assim como na obra que completa 100 anos, Caçadas de Pedrinho. Nesta última, foram protocoladas, inclusive, representações junto ao Conselho Nacional de Educação (CNE), sob alegações de que a obra não atenderia às diretrizes, entrar na lista de aquisições do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) por conter conteúdo racista.
Apesar disso, Medeiros, que também é membro da Academia Paraibana de Letras (APL), ressalta que é preciso examinar o contexto em que Monteiro Lobato viveu, tanto de sua origem — era neto de fazendeiro — como de seu tempo — nas primeiras décadas do século passado ainda havia resquícios da escravatura —, fatos que contribuem para que alguns personagens apresentassem discriminação com relação às pessoas negras.
A especialista afirma que, no atual cenário da literatura infantil brasileira, vários escritores têm se debruçado sobre temas como o combate ao racismo e à discriminação entre os gêneros, assim como à aceitação das diferentes religiões e incorporado estas questões em suas páginas. “Encontramos inúmeros livros que procuram demonstrar que todo e qualquer tipo de preconceito deve ser banido da literatura destinada às crianças. Vivemos o momento de integração, de cumplicidade”.
Em relação às obras lobatianas acusadas de racismo, Medeiros sugere que o problema deve ser explicado com sutileza nas escolas e pode servir, inclusive, para promover debates interessantes sobre negritude e cultura africana. “Considero que Monteiro Lobato abriu as portas da literatura infantil brasileira. Ele era um idealista, um empreendedor, um batalhador pelas causas nacionalistas e um grande fabulista, embora tivesse seus defeitos, como todo ser humano. Ele contribuiu muito para que a literatura infantil brasileira chegasse ao patamar que hoje chegou”, pontua, listando grandes escritores e quadrinistas, como Ziraldo (1932-2024) e Mauricio de Sousa, que se inspiraram na obra do paulista para criar seus personagens.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 22 de setembro de 2024.