Era 13 de maio de 1888 quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, extinguindo a escravidão no Brasil, e tornou-se uma “heroína nacional”... ao menos para a versão oficial da História, como o Estado brasileiro a contava. Esse viés, contudo, foi contestado, principalmente pelos movimentos negros do país a partir da década de 1970. E o chamado Dia da Abolição da Escravatura, antes visto como uma data de celebração, é, atualmente, um momento de conscientização e de luta pelos direitos da população negra.
Para entender os motivos da contestação da Lei Áurea como uma “lei divina”, conforme a cantou o samba “Liberdade, Liberdade, abra as asas sobre nós”, é preciso reconhecer as diferentes formas de encarar a sua criação. O historiador e integrante do movimento negro de Campina Grande, Ariosvalber Oliveira, conta que o caminho até o dia 13 de maio de 1888 passou por diversas leis que buscavam dar uma satisfação à sociedade e ao mercado internacional, os quais pressionavam o Império brasileiro pelo fim da escravidão. Tais legislações, porém, mais preservaram os privilégios dos grandes senhores de terra que beneficiaram as pessoas escravizadas.
“Nós vamos ter, em 1850, a Lei Eusébio de Queirós, que proíbe a entrada de escravizados africanos. Ela tenta contrapor a lei de 1831, que também proibia, mas ficou conhecida como ‘Lei para inglês ver’, porque foi desrespeitada. Já em 1871, a Lei do Ventre Livre determinava que os filhos dos escravizados deveriam nascer livres, mas ela não funciona, de fato. E, por fim, nós vamos ter, em 1885, a Lei dos Sexagenários, que considerava livres os escravizados com mais de 60 anos. Mas essa é uma lei perversa, a partir do momento que milhares de escravizados nem chegavam a essa idade, devido às condições abjetas de sobrevivência”, explica Ariosvalber.
Inflamada pelos movimentos abolicionistas, a esfera legislativa do país gesta diferentes projetos que propunham uma abolição mais robusta, com a previsão, por exemplo, de ações de reforma agrária. O Império, porém, atropelou as discussões com a criação da Lei Áurea. Uma norma curta, de apenas dois artigos, e tardia, já que o Brasil foi o último país das Américas a acabar com a escravidão. Sem nenhuma iniciativa oficial de inclusão e impedida, pela Lei de Terras de 1850, de possuir propriedades privadas, a população de ex-escravizados viu-se abandonada à própria sorte.
Com o tempo, o reconhecimento das contradições envolvendo a Lei Áurea levou os setores organizados da sociedade a questionar o costume oficial de comemorar a Abolição da Escravatura. Em 1978, surge o Movimento Negro Unificado, que se expande pelo país, chegando a João Pessoa, em 1980, e a Campina Grande, em 1986. Nomes como Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez, em âmbito nacional, e João Balula, Socorro Pimentel e Josemir Camilo, na Paraíba, tornam-se referência na busca por ressignificar a narrativa histórica.
“Esses militantes vão questionar a data de 13 de maio e exigir que a data significativa para o povo negro é o 20 de novembro. E vão denunciar como o 13 de maio foi um projeto que resultou no processo de exclusão dessa população negra”, relata Ariosvalber Oliveira. O dia 20 de novembro, escolhido por ser o aniversário da morte do líder quilombola Zumbi dos Palmares, torna-se um marco oficial apenas em 2011, com a instituição do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, pela Lei nº 12.519.
“Verdadeira abolição”
A luta dos movimentos negros pelos direitos dessa população consiste na busca por uma “verdadeira abolição”. Esse é o termo usado por Renálide Carvalho, doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e ativista da Marcha da Negritude Unificada e do Movimento de Mulheres Negras da Paraíba. “Abdias do Nascimento dizia que, de escravizados, os negros passaram a favelados, meninos de rua, vítimas preferenciais da violência policial, discriminados na esfera da justiça, invisibilizados nos meios de comunicação, negados nos seus valores, na sua religião, na sua cultura. Então, a gente só pode falar em abolição, quando, de fato, a gente abolir todas essas desigualdades”, defende.
Em João Pessoa, o dia de amanhã será marcado justamente por iniciativas que visam à conscientização sobre o tema. Uma delas é o evento “136 anos de resistência negra em busca da verdadeira abolição”, que será realizado, a partir das 13h, no Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA) da UFPB. A programação prevê roda de conversa, roda de capoeira, sarau e oficina de teatro. A oficina, aliás, será ministrada por Renálide Carvalho, que também é poeta, feminista negra e atriz.
Para Renálide, a arte é uma ferramenta de ativismo social que alcança brechas aonde outros discursos não chegam. “Muitas vezes, a pessoa não se concentra em uma fala política, mas vai prestar atenção e se emocionar com uma música, uma apresentação teatral, uma performance, um poema. Então, a gente acredita muito no poder da arte engajada e comprometida com a transformação da sociedade”, afirma a poeta.
Educação é vital no combate ao racismo
Um dos símbolos da resistência do povo negro durante o período da escravidão foram os quilombos. Destino de escravizados fugidos e locais de sociabilidade e preservação da cultura, as comunidades quilombolas consistem, para o historiador Ariosvalber Oliveira, em um espaço de alternativa aos modelos sociais vigentes. “A constituição dos quilombos no Brasil e na província da Paraíba foi um movimento de reação, de negação ao projeto do Estado brasileiro. São constituições de sociedade que se contrapõem e negam a estrutura oficial”, comenta o ativista negro campinense.
Na Paraíba, existem hoje cerca de 50 comunidades remanescentes de quilombos e reconhecidas pela Fundação Palmares. A pedagoga Luciene Tavares é de uma dessas localidades. Ela afirma que a vivência na terra natal, Caiana dos Crioulos, em Alagoa Grande, foi fundamental para sua atuação enquanto professora. “Eu fui criada dentro do quilombo. Eu sou filha, neta de mestres e mestras da cultura popular, do coco de roda e da ciranda. E, dentro da educação, algo que eu sempre pautei foram as questões étnico-raciais e culturais, as memórias do meu quilombo, sendo tratadas de forma eficaz dentro da sala de aula”, conta.
De acordo com Luciene Tavares, a educação formal como um todo tem acompanhado, de forma lenta, as transformações na abordagem de temas como a Abolição da Escravatura. A pedagoga defende a formação continuada de todos os agentes da educação como o caminho para um ensino mais inclusivo. “A gente ainda vê um trabalho efetivo de uma pequena parte das pessoas, aquelas que se sentem conscientizadas, mas há uma fragilidade em muitas instituições. Por isso, é importante a formação continuada dos professores e também ouvir a comunidade onde a escola está inserida, porque a escola tem um papel fundamental no combate ao racismo”, aponta a pedagoga.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 12 de maio de 2024.