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‘O Homem de Areia’: clássico da Paraíba completa 40 anos

publicado: 02/12/2021 08h36, última modificação: 02/12/2021 09h19
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Produção do documentário sobre José Américo foi “uma operação de guerra”, interditando na época a Av. Cabo Branco, na capital

tags: O Homem de Areia , clássico , Paraíba , 40 anos , José Américo de Almeida , Vladimir Carvalho

por Guilherme Cabral*

Dirigido pelo paraibano Vladimir Carvalho, O Homem de Areia é um documentário que traça um perfil do ex-ministro e escritor José Américo de Almeida (1887-1980) que está completando os 40 anos de lançamento hoje. “Eu estava devendo isso a esse grande intelectual e estadista paraibano e fico muito feliz pelo filme chegar ainda intacto em sua estrutura, nessas quatro décadas”, observou o realizador. “Os negativos, a matriz, está no Centro Tecnológico do Audiovisual, no Rio de Janeiro. Estou me movimentando para que o filme seja relançado em alguma plataforma de streaming, pela sua importância histórica”, revelou ele, que também assina o roteiro do longa-metragem.

Vladimir Carvalho lembrou que a ideia de produzir o filme, lançado em 1981, surgiu no próprio ambiente familiar. “Isso já nasceu na minha casa. Foi influência do meu pai, que era leitor e admirava a figura de José Américo, principalmente pelo grande estadista que ele foi. Depois, eu tomei conhecimento de José Américo, que criou, no início dos anos 1950, a Universidade Federal da Paraíba, que considero uma grande revolução cultural e fundamental. A Paraíba é antes e depois da UFPB, porque, a partir da universidade, tomou um novo rumo. Um exemplo simples disso é que Linduarte Noronha, cineasta do seminal documentário Aruanda, foi integrante da primeira turma de Direito da Universidade”, explicou o cineasta.

“Fui formado por essa ambiência. Um dia, em meados dos anos 1960, o repórter do jornal Correio da Paraíba – que tinha mais credencial para entrevistar José Américo – faltou ao expediente, por algum motivo. Então, Eurípedes Gadelha me disse: ‘Sobrou para você ir fazer a entrevista na casa de José Américo’. Eu fui. Já o admirava e o tinha como um mito. Ele me recebeu de paletó, foi logo falando e eu tomando notas num bloco. No final, José Américo pediu que eu lesse o que havia anotado. Tremi nas pernas, mas consegui ler meus garranchos e rubricou folha por folha. Na volta para o jornal, Eurípedes fez o copidesque e até hoje me arrependo por não ter guardado aquelas folhas com as rubricas de José Américo”, contou o cineasta.

Vladimir, cerca de duas décadas depois do encontro com o ex-ministro e escritor, já morando entre Brasília e o Rio de Janeiro, retorna à Paraíba. “Voltei em 1979 para fazer o filme e consultei amigos como Paulo Melo, que era muito ligado ao então governador do Estado e ex-secretário da Educação e Cultura, Tarcísio Burity. O longa-metragem foi produzido pela Embrafilme, com apoio da Secretaria da Educação e Cultura da Paraíba e de Tarcísio Burity”, afirmou ele.

Realizado com uma grande equipe, foi “uma operação de guerra” fazer O Homem de Areia. “Consegui que a Avenida Cabo Branco, que passa em frente à casa de José Américo, fosse interditada, com o objetivo de evitar o barulho que o trânsito de automóveis causaria, pois os gravadores não contavam com a tecnologia de hoje”, detalhou Carvalho. “Para fazer a grande entrevista com José Américo, convidei os maiores jornalistas da Paraíba, como Adalberto Barreto, Natanael Alves, Gonzaga Rodrigues e Juarez Batista, e que durou quase um dia inteiro”.

O próprio título do documentário já faz uma referência a José Américo de Almeida, que nasceu em 1887, no município de Areia, localizado na região do Brejo paraibano, e morreu em 1980, na capital, aos 93 anos de idade. Durante a entrevista aos jornalistas, coordenada por Vladimir Carvalho, o escritor e político falou de suas memórias, relembrado os fatos importantes que vivenciou, a exemplo da Revolução de 1930, sua candidatura à Presidência da República, em 1937, a célebre entrevista de 1945, que provocou a queda do ditador Getúlio Vargas, e a posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1967.

“Nesse dia da entrevista, a secretária de José Américo, Lourdinha Luna, que já faleceu, me alertou que, na manhã seguinte, o ex-ministro iria receber a visita do escritor Jorge Amado e sua esposa, Zélia Gattai, e Calazans Neto, xilogravador fantástico e célebre, na Bahia. Eu disse a ela para consultar o ex-ministro para saber se poderia filmar esse encontro e José Américo concordou. No outro dia, às 7h, estava lá com meu irmão, Walter Carvalho, que, nessa ocasião, participou do primeiro filme como fotógrafo comigo. Como me instalei antes, no local, nadei de braçada para registrar a reunião de grandes escritores, como se fosse o núcleo do filme, e criei o artifício de José Américo vir andando pela beira-mar da Praia do Cabo Branco e, enquanto isso, ele vai relembrando a sua trajetória de vida”, contou Vladimir.

No entanto, o cineasta admitiu ter tido problemas com a produção. “Foram falar com José Américo, dizendo que eu era um homem perigoso e esquerdista e meu filme, O País de São Saruê, estava interditado pela censura, pois ainda estávamos na ditadura militar”, pontuou o documentarista. “O filho de José Américo, o general Reinaldo de Almeida, preventivamente, mandou um agente da censura procurar o presidente da Embrafilme, Roberto Farias, para pegar o roteiro de O Homem de Areia. Farias teve uma reação extraordinária, corajosa e à altura, ao dizer que só recebia ordens do seu superior, o ministro da Educação, e não entregou o roteiro”, relembrou ele.

Vladimir Carvalho contou outra curiosidade em torno do documentário: “Tenho medo de avião, como quase todo mundo, mas aceitei sobrevoar a Baía de Todos os Santos, em Salvador, para filmar o local do acidente, ocorrido em 1932, com a aeronave Savoia Marchetti, do qual José Américo escapou, mas causou a morte de outro passageiro, o interventor da Paraíba, Antenor Navarro. Américo conseguir sobreviver foi um milagre, pois era míope e não sabia nadar. Enquanto filmava e sobrevoava, senti uma pane emocional, um abalo, porque perdi o contato com o piloto, que baixava o avião até perto das ondas, em alto mar. Foi uma sequência inesquecível, porque sofri muito, mas usei as imagens para ilustrar o momento em que o ex-ministro relembra o acidente”, justificou o cineasta.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 02 de dezembro de 2021