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‘Olho de Peixe’

“Como se fosse um jogo de capoeira”

publicado: 27/06/2023 09h22, última modificação: 27/06/2023 09h22
Lançado há 30 anos, álbum independente de Lenine volta remasterizado e em uma inédita edição limitada em vinil
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Considerado um dos marcos na música brasileira e a obra-chave na carreira de Lenine (E), disco do pernambucano contou com a percussão orquestral do carioca Marcos Suzano (D) - Foto: Selmy Yassuda/Divulgação
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O álbum foi lançado apenas em CD no ano de 1993 - Imagem: Reprodução
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Obra inclui um ‘songbook’ inédito que evidencia a parceria fundamental com o paraibano Braulio Tavares (foto), compositor de cinco das onze faixas do disco - Foto: Maria Flor Brazil/Divulgação
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Braulio Tavares - Foto MARIA FLOR BRAZIL.JPG

por Joel Cavalcanti*

Olho de Peixe é considerado um dos marcos na música brasileira e a obra-chave na carreira de Lenine. O suingue que vinha das cordas eletroacústicas do violão do pernambucano, somado à percussão orquestral do carioca Marcos Suzano, trouxe uma sonoridade inovadora e experimental que desafiou as convenções musicais da época. Completando 30 anos, o álbum independente que havia sido lançado apenas em CD – uma novidade em 1993 –, chega agora remasterizado nas plataformas digitais e, pela primeira vez, em uma edição limitada em vinil, com a identidade visual atualizada. A obra inclui um songbook inédito que evidencia a parceria fundamental com o paraibano Braulio Tavares, compositor de cinco das onze faixas do disco.

“Eu tenho muito orgulho do disco, de como foi feito, do processo todo, da maneira como dividimos duas coisas aparentemente tão antagônicas. Ele como percussionista foi um harmonizador e eu, como harmonia, fui um percussionista no violão. Isso deu uma dicotomia muito benéfica para gente: era como se fosse um jogo de capoeira. Suzano como percussionista harmonizou o disco e eu, que sou da harmonia, do violão, ‘percurssivei’, se isso é possível”, diz Lenine. Olho de Peixe não teve aceitação imediata no Brasil, mas foi muito bem recebido no exterior, com a dupla sendo convidada para tocar em festivais no Japão, Europa e EUA. Com o tempo, o álbum se solidificou como uma evolução na percussão e no violão brasileiro.

Olho de Peixe tem uma atmosfera acústica, arranjos complexos e texturas musicais distintas que conseguem conciliar o samba, o pop e o maracatu com a orquestra de pífanos e a banda de rock: um pandeiro que se transforma em uma bateria completa e um violão com ressoa com um forte groove. Mas o disco possui também melodias inspiradas e letras com uma forte influência marítima, que se situam entre as referências localizadas entre Pernambuco e Rio de Janeiro. Com a participação de Braulio Tavares, o disco amplia os seus horizontes, que englobam do Sertão nordestino ao deserto do Saara por meio de um futurismo lírico e pós-apocalíptico.

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Considerado um dos marcos na música brasileira e a obra-chave na carreira de Lenine (E), disco do pernambucano contou com a percussão orquestral do carioca Marcos Suzano (D) - Foto: Selmy Yassuda/Divulgação

“Uma coisa presente era esse tema de ‘distopia’, pelas nossas leituras de ficção científica, algo que eu e Lenine curtíamos, emprestávamos livros um ao outro... A gente também lia quadrinhos de Alan Moore, Moebius, Sandman, Cavaleiro das Trevas”, relembra Tavares. A ficção científica é também o que explica a criação da música ‘Tuaregue e Nagô’, que trata sobre uma ilha fantástica no Atlântico onde havia sinais da cultura portuguesa, africana, grega e árabe. “Uma metáfora do Nordeste. Eu fiz a letra como poema, no encarte do vinil Baque solto original. Depois ele musicou; e fizemos juntos o refrão, que dá o conceito: ‘Quando o grego cruzou Gibraltar…’”, cita ele.

Essas referências da literatura fantástica estão presentes também em músicas como ‘Acredite ou não’ e ‘Mais além’. Esta última, por exemplo, foi composta quando Lenine, Lula Queiroga, Ivan Santos e Braulio Tavares formavam a banda conceitual chamada Wolf Gang, que ensaiou por meses, mas sem jamais subir aos palcos. Na época, fazia sucesso o filme de Milos Forman, Amadeus, uma cinebiografia de Mozart, cujo nome era Wolfgang Amadeus Mozart. “Ficávamos ensaiando músicas nossas e alheias, e compondo. ‘Mais além’ surgiu de uma levada inspirada em ‘Clap hands’, de Tom Waits, que todos nós escutávamos muito (Rain dogs). Acho que a maior parte dos versos foi escrita por Lula e Ivan; quando me mostraram já estava quase tudo pronto”, conta Tavares sobre música gravada também por Ney Matogrosso.

Já ‘O que é bonito’ nasceu de um poema que Braulio Tavares havia publicado numa revista e Lenine decidiu musicar. “Não acreditava nela como letra de música, mas acabou funcionando muito bem. Não foi escrita para ser musicada. Tinha uma cadência interna própria, mas Lenine soube usar essa cadência e colocar uma melodia em cima, um processo mais difícil do que parece”. A forma com a qual Lenine e Braulio compunham funcionava em um esquema que o paraibano chamou de “sistema Lennon-McCartney”. Braulio explica melhor as semelhanças com a dupla dos Beatles. “Tanto Lennon quanto McCartney compunham às vezes uma primeira parte da canção (letra e música juntas) e mostravam ao outro – e o outro fazia sozinho uma segunda parte. Esse sistema quebra a velha rotina de ‘um faz a letra, o outro faz a música’”.

O melhor exemplo do uso desse sistema está em ‘Miragem do porto’, terceira faixa do disco. “Lenine já tinha a parte que diz ‘Eu sou aquele navio…’ e eu fiz a parte ‘Ê lá no mar…’. Mas é claro que depois que a gente junta as duas partes, cada um mexe um pouquinho na letra do outro, na música, troca uma palavra, sugere uma mudança na melodia... A canção é retrabalhada em conjunto”, acrescenta Braulio Tavares.

Um trabalho que mudou a relação de Lenine com a música. “O meu filtro como compositor é completamente diferente do filtro que tenho como intérprete, como cantor e músico. Parte do que produzo não é para mim, e Olho de Peixe foi minha redenção como intérprete. Eu entendi que podia cantar um tipo de música. Mais do que qualquer coisa, eu me transformei em um artesão sonoro. Não queria agradar ninguém a não ser eu mesmo e quem estava próximo de mim”, finaliza Lenine.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 27 de junho de 2023.