por Joel Cavalcanti*
Quando Maria Valéria Rezende nasceu há exatos 80 anos, a cidade de Santos (SP) estava em blackout. A convivência com a escuridão era uma forma de proteção dos bombardeios submarinos durante a Segunda Guerra Mundial, e esta imagem está marcada nas suas memórias mais antigas. “Eu fecho os olhos e ainda vejo o carro do meu pai com uma caixa preta enorme amarrada atrás com cinturões de couro. Era um gasogênio para mover o carro, porque meu pai tinha direito a usar isso por ser médico. Não tinha gasolina durante a guerra”, remonta a escritora sobre os acontecimentos de quando ela tinha apenas três anos de idade. A família foi toda para a praia para ver o pôr do sol e testemunhar uma surpresa da qual ela não fazia ideia do que seria. “Quando o sol se esconde atrás da serra, de repente… pá! Se acendem todas as luzes da cidade, que a gente nunca tinha visto”. Era o fim da guerra e o início de uma vida que sempre imaginou uma realidade muito melhor do que ela se apresenta.
No dia em que celebra oito décadas de vida, Maria Valéria se encontra cega do olho esquerdo e convive com uma catarata que não pode ser operada no direito, com o qual vê apenas luz e sombra. Essas memórias de infância no litoral paulista fazem com que ela não tema voltar ao breu. “Eu já estou convencida que isso vai acontecer. Ou eu morro ou fico cega, mas, de qualquer forma, eu vou para o escuro”. Levando as mãos em um formato côncavo à altura dos olhos, ela deixa um pequeno espaço exposto à luz para explicar o que costuma fazer quando não consegue enxergar algo. Parece um gesto apropriado a quem se acostumou a ver a vida e os seus personagens pelas frestas, colecionando as infinitas possibilidades do humano. “Tem dois tipos de escritores: o que para se inspirar olha o espelho, e o que se inspira olhando pelas janelas e pelas frestas. Eu sou desse segundo tipo”, define-se.
“Eu sou uma pessoa que está muito mais interessada no que está fora de mim do que no que está dentro. Não sou introspectiva, de jeito nenhum, nem sou uma pessoa que fica pensando nos meus dramas. Sei lá se eu tenho drama nenhum”, diz Maria Valéria, que hoje costuma ler apenas com o suporte digital em uma tela de 40 polegadas com o fundo preto, onde as palavras se destacam. Para escrever, muitas vezes ela dita seu texto para o computador, e depois o adapta à linguagem menos presa ao registro da fala. Ela tem uma linguagem erudita, mas é maleável. Adocicada por uma poesia que existe em nome de uma leitura social do mundo. “São dois circuitos neurais muito diferentes. Quando eu dito é diferente do que escrevo. E sou muito tagarela, depois preciso sair cortando”, fala entre risos, contando sem cerimônias todos os desafios que vem superando. “A gente nunca foi tão velha antes. Todo santo dia, eu tenho que descobrir algo que eu não consigo mais fazer que até ontem eu fazia”.
Tem sido um período de uma maratona de homenagens e compromissos. Mesmo eventos mais simples em João Pessoa costumam contar com a presença ilustre da escritora. “Eu não posso recusar porque as pessoas estão fazendo por bem”, diz ela, logo após de sair de uma reunião virtual com roteiristas interessados em transformar O Voo da Guará Vermelha (2005) em filme. Hoje, por exemplo, ela estará às 20h, na Sala Vladimir Carvalho, da Usina Energisa, em João Pessoa, para uma homenagem realizada por André Morais e Ingrid Trigueiro. São tantos tributos que tem sobrado pouco tempo para dar conta de seu ofício. “Terminado esse momento dos 80 anos, vou me recolher e vou acabar os livros que estão pela metade. Eu não quero deixar obra póstuma. Tenho cinco romances começados e não acabados. E o pior é que todo dia eu tenho uma ideia nova. Ontem eu tive uma ideia que eu gostei e já escrevi um resumo”.
Além dos livros que ainda quer escrever, Maria Valéria carrega consigo todos os personagens que criou. “Eles vivem na minha cabeça. Todos eles poderiam ter uma continuação. Inclusive, os meus últimos livros não têm um ponto final. Eu posso continuar na hora que eu quiser um outro volume. Só que eu não tenho mais tempo para isso. Já estou com o prazo de validade vencido há muito tempo”. Uma dessas personagens de convivência mais presente no cotidiano de Maria Valéria Rezende é Isabel das Santas Virgens, de Carta à Rainha Louca (2019). A mulher presa no convento clandestino enfrentando todos os tipos de repressão está presa também em seus pensamentos. “Eu tenho pronto na cabeça mais dois volumes de continuação”, anuncia. Valéria é freira de uma congregação rebelde que precisou lutar contra a repressão do Concílio de Trento que, no século 16, reafirmou os dogmas da Igreja questionados pela Reforma Protestante. Ela não é monja. É cônega, forma religiosa anterior à vida monástica, portanto convive entre o povo e não trancada em mosteiros.
Maria Valéria se considera uma semi-estranha em todos os lugares onde ela vai, mantendo sempre um olhar estrangeiro a tudo que a cerca. “Eu tenho sotaque BR-101, ou 116”. E tantas andanças atraem muitos acasos. Por isso, ela coleciona vários com personalidades. Ela já jogou bola com Pelé quando ele tinha por volta de 14 anos, e, assim que Paulo Freire voltou do exílio, ele foi para Guarabira (PB) para visitar o Centro de Educação Popular coordenado pela amiga. “A gente ia mostrando as coisas e ele dizia: ‘Então é verdade!’. Aquilo tudo que ele tinha dito havia se transformado em prática real”. Ela chegou a ter conversas em viagens de ônibus com Drummond.
Foi com essa liberdade que ela deu a volta ao mundo quatro vezes, sempre trabalhando como educadora popular. Ela vive em João Pessoa desde 1989, mas chegou à Paraíba ainda em 1976, fixando moradia em Guarabira. Com essa vida mais geograficamente limitada, ela mantinha algumas estratégias para conhecer novos personagens. “Um dia por semana, eu pegava o carro e saía pela cidade sem destino e, sempre que via alguma coisa interessante, parava e ia olhar. Percorria tudo que era ferro velho em João Pessoa”, diz a escritora que segue pela casa mostrando peças que mandou fabricar daquela época. Atualmente, ela não tem mais esse hábito, que é compensado com a peregrinação que muitos fazem até a casa onde vive e que podem fornecer a ela novas facetas de seus novos personagens. “Eu virei uma espécie de atração turística. É engraçado porque os escritores que vêm a João Pessoa querem passar por aqui”.
Fama que veio como todos os prêmios que acumula na carreira. O maior sucesso editorial, contudo, é Não se pode servir a dois senhores, um livro que foi criado para as comunidades eclesiais de base que tinham um extenso e eficiente sistema de distribuição. “A Cia. das Letras nunca escolheu meus livros como uma opção para vender. Tanto que não existem meus livros nas livrarias, e nem o Prêmio Jabuti mudou isso”. Ela enxerga nesse contexto uma questão de gênero e também sobre onde ela vive. “Quando ganhei os primeiros prêmios, chegava ao Rio e em São Paulo e as pessoas me perguntavam: ‘Agora você vai voltar para cá, não é?’. Como se eu estivesse na Paraíba porque não tenho competência para estar lá. A pessoa precisa ser terraplanista para acreditar que existem centros de regiões”, ironiza ela, que já ganhou todos os prêmios que era possível ganhar.
Além de cinco prêmios Jabuti, incluindo o de Melhor Livro do Ano, ela tem o Prêmio São Paulo, o Oceanos, o Casa das Américas. “Existem muitos partidos e muitas igrejinhas no meio literário. A minha impressão é que, no júri desses prêmios, chegou à final e estava empatado. Para resolver o impasse eles resolvem dar ‘para essa velha neutra que ninguém vai reclamar’, entendeu? Prêmio literário é uma espécie de jogo do bicho: não existe régua e compasso para medir qualidade literária”, compara.
Um assunto que demonstra predisposição a falar sem reservas é sobre a morte. “Eu não tenho medo de morrer porque já morri várias vezes. Quase morri afogada, já sofri um desastre de avião, tive um infarto fulminante e levei dois dias para ser atendida… Mas não me sinto livre para morrer ainda. Tem tarefas que eu tenho que terminar. Não posso tirar o time de campo assim. Mas estou quase acabando, estou quase pronta para morrer”. Maria Valéria não cita propriamente os romances inacabados como uma missão indispensável nesse acerto de contas com a morte. “São pessoas que de alguma maneira ainda dependem da gente, mas agora tem menos. Estou quase podendo entregar a rapadura”, afirma, declarando já ter destinado como herança para a escritora amiga Natalia Borges Polesso todas as suas cadernetas de anotações de ideias para seus textos.
Questionada se ela enxerga o que existe além dessa vida de acordo com o que prega a Igreja Católica, ela dá uma resposta cujo sentido está nas entrelinhas, que os seus leitores já estão habituados a tentar decifrar. “Escuta, nunca se encontrou nenhuma comunidade humana primitiva que não tenha construído uma religião, porque isso é uma intuição que o mundo não é só isso, que há um mistério para além. Ora, mas o típico do mistério é que ele não cabe na nossa linguagem. Por isso é preciso ter fé. Todas as vezes que se tenta criar dogmas de fé, se reduz o mistério à nossa linguagem”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 8 de dezembro de 2022.