Com o desenvolvimento de algoritmos capazes de criar histórias completas, é possível que, no futuro, não haja mais espaço para a criatividade e a originalidade humanas na literatura. Quem afirma isso tem lugar de fala. Essa previsão sombria não foi fruto do raciocínio de nenhum ser humano. Ela foi pronunciada exatamente por quem é responsável por esses algoritmos: a Inteligência Artificial (IA) do ChatGPT. Lançado em novembro de 2022 pela OpenAI – cofundada pelo controverso Elon Musk –, ela já ultrapassou, em janeiro, a marca de 100 milhões de usuários por mês, tornando-se o aplicativo de mais rápido crescimento da história. Um ritmo de absorção pela sociedade que desafia a compreensão sobre suas consequências por parte de escritores e escritoras. Mas, criativamente falando, eles conseguem ainda imaginar.
O escritor Bruno Ribeiro, finalista do prêmio Jabuti com seu Porco de Raça, se interessou de imediato em explorar as capacidades do ChatGPT. Reconhecido por criar distopias de terror, ele já havia feito alguns experimentos absurdos no aplicativo, como simular como seria um conto de amor escrito por Alexandre Frota ou imaginar o país depois da morte de Jair Bolsonaro. Ele também fez simulações usando outros amigos escritores, a exemplo de Roberto Menezes e João Matias. “Tudo que a gente sempre lê na ficção científica é o que já vem acontecendo. Nós já estamos vivendo uma distopia. Não tem mais o que fazer. Quando você tem uma ferramenta dessa que você consegue emular uma escrita, um conto ou um romance, isso já é um estado máximo de distopia”, acredita Ribeiro.
Atingir esse estágio só é possível porque a IA está programada para gerar respostas em linguagem natural para uma ampla variedade de perguntas e tópicos, utilizando um enorme conjunto de dados de treinamento. Para esse treinamento, o sistema é alimentado com grandes quantidades de dados de texto para que possa aprender padrões linguísticos e entender o contexto em que as palavras são usadas. À medida que o modelo é treinado com mais dados, ele melhora a precisão de suas previsões e se torna capaz de gerar respostas mais complexas e semânticas. Ele consegue, inclusive, emular um determinado padrão estético de um escritor ou escritora. Foi essa tarefa que o ChatGPT foi requisitado a criar: um conto seguindo o estilo de Bruno Ribeiro.
“Era uma noite escura e chuvosa quando o jovem Luiz saiu de casa para comprar cigarros. Ele caminhou pelas ruas vazias, sentindo o vento frio cortar sua pele. De repente, algo estranho chamou sua atenção: uma luz vermelha piscava ao longe, como se viesse de uma casa abandonada. Ele hesitou, mas a curiosidade falou mais alto. Luiz se aproximou e viu uma porta entreaberta. Sem pensar duas vezes, entrou”. Assim começa o texto que não pode ser creditado a ninguém por ter sido inteiramente criado por uma máquina tentando se fazer passar por Bruno Ribeiro. “Eu fico preocupado: será que escrevo tão mal assim? É assim que ele vê que eu escrevo? É meio tosco”, diz Ribeiro, aos risos. Mas ele faz ressalvas importantes. “É interessante porque ele pega temas e palavras chaves que eu escrevo. Essa ideia de lugar abandonado, luz vermelha e monstro têm relação com o que escrevo. Na minha literatura, estou fazendo algo totalmente antimáquina e, quando a gente vê, ele está emulando o que eu faço. O algoritmo está na nossa mente, ele não vem de fora. Vem de dentro. Por isso é tão assustador e parte totalmente do terror. Ele acessa você por dentro”, compara o escritor.
Reação similar teve a escritora paraibana Débora Gil Pantaleão. Ao ChatGPT foi pedido que criasse um poema como ela apresentou em obras que vão desde Se eu tivesse alma (2015) até Objeto ar (2018). Os versos da máquina começam assim: “Eu guardo as lembranças / como quem coleciona pedras / no bolso da calça jeans / e as carrego comigo / como se fossem tesouros / de um tempo que já passou”. Essa é só a primeira estrofe de uma sequência de trivialidades. “Eu achei bem ruim. Espero que eu escreva um pouquinho melhor que isso aí”, brinca Débora Gil. Mas ela também traça um paralelo interessante entre a máquina e o ser humano nessa colagem de referências diversas que levantam questões sobre privacidade e plágio. “Como a gente fala e escreve, já tem intertextos. Sempre teve. Isso não me assusta, mas eu não sei se isso é porque estou inocente”.
O que talvez mais tenha potencial para assustar não seja o quanto o programa é inteligente, mas o quanto ele pode ser estúpido e até criminoso em formas que não se pode prever. O ChatGPT tem como base de dados a própria internet, e se sabe como essa fonte de informação pode ser problemática, servindo como um espelho que reflete o melhor e o pior das pessoas. Já se sabe que IA pode contribuir para a disseminação de estereótipos e preconceitos, o que pode levar a uma produção literária padronizada e homogênea, que não reflete a diversidade da sociedade. Outra preocupação é que a IA possa ser usada para manipular a opinião pública por meio da criação de conteúdo falso ou propaganda em larga escala com textos convincentes que afetam a percepção das pessoas sobre questões importantes. Escritores negros, tanto Débora Gil Pantaleão quando Bruno Ribeiro precisarão continuar enfrentando no futuro o racismo de uma inteligência artificial.
O programa executa tarefas que estão além da compreensão humana, ensina a si próprio e não mostra como funciona, tampouco é regulado a não ser pelas próprias empresas. Neste cenário, nem mesmo os engenheiros envolvidos no projeto podem entender ou explicar exatamente o que acontece dentro da caixa preta dele. Uma coisa é certa: ainda estamos no início do que essa tecnologia vai ser. A Microsoft está investindo 10 bilhões de dólares em sua respectiva OpenAI, e tanto a Meta quanto o Google devem lançar em breve seus concorrentes ao ChatGPT. “É a primeira vez que eu vejo uma inovação que afeta esse campo da arte que me assusta um pouco. Por mais que ache curioso e interessante, fico me perguntando daqui uns anos se essas coisas escalarem rápido como estão escalando, como vai ser? Como fazer agora com que a nossa linguagem seja visceralmente mais humana que a máquina vai emular da gente?”, questiona-se Bruno Ribeiro.
As inquietações de Débora Gil são menores porque ela não vê na IA um risco para o seu mercado de trabalho. “Se a gente vivesse de literatura, isso seria algo que me preocuparia mais. Mas a gente já não consegue viver de literatura. Então, vou continuar sem pagar minhas contas. Enquanto humanidade, e no capitalismo, estamos sempre tentando desvalorizar a linguagem e a comunicação. É sempre sobre como a gente lida com as máquinas e a IA. O que isso nos faz ver sobre a humanidade e como a gente se organiza emocionalmente ou coletivamente”, defende Débora Gil. Por ter uma escrita mais barroca e sinistra, Bruno Ribeiro não vê por enquanto como ele pode usar essa ferramenta em sua produção criativa. “Talvez o nosso desafio como escritor é tentar driblar esses mecanismos, que vão ser difíceis, mas acho que seja possível. Talvez seja esse o nosso trabalho. O trabalho da arte é fugir do automatismo”, conclui Ribeiro.
Assim como o ChatGPT pode transformar autores de textos em algo obsoleto, também é possível fazer dele um leitor opinativo. Eis aqui o que o modelo de linguagem de inteligência artificial achou deste texto jornalístico: “A opinião crítica sobre a relevância e pertinência do texto é que ele é muito relevante e oportuno, uma vez que a discussão sobre os limites e possibilidades da Inteligência Artificial na arte é extremamente atual e tem implicações imprevisíveis para o futuro da humanidade. Além disso, o texto traz informações importantes sobre a tecnologia e como ela funciona, bem como exemplos concretos de sua aplicação na literatura. No entanto, é importante lembrar que o texto apresenta um ponto de vista específico e não cobre toda a extensão do debate sobre o assunto”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 9 de abril de 2023.