por Joel Cavalcanti*
Uma semana após o anúncio da escolha do filme Marte Um para representar o Brasil na disputa por uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Internacional, o mineiro Gabriel Martins vem a João Pessoa para debater sobre seu primeiro longa-metragem solo na direção. O encontro será amanhã, após a exibição do filme marcado para as 19h, no Cine Bangüê do Espaço Cultural José Lins do Rego, com ingressos custando R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).
O filme tem emocionado o público ao contar a história de uma família negra da periferia convivendo entre trabalhos, utopias, amores e traumas em um país que acaba de eleger um presidente de extrema-direita. Os destinos da família são representados no personagem de Deivinho, que quer integrar uma missão tripulada para colonizar Marte em 2030. Um sonho comparável com o do realizador negro que desde criança fazia planos de ser diretor de cinema.
O elenco é formado por atores pouco conhecidos, além da pequena participação do paraibano Pablo Giorgio. Na entrevista a seguir, o Martins destaca os pontos fortes de sua produção, além das influências cinematográficas que teve e como pretende contornar a falta de apoio do Governo Federal para levar seu filme para a premiação de cinema de maior visibilidade do mundo.
A entrevista
- No anúncio de ‘Marte Um’ como representante do Brasil para uma vaga no Oscar de Melhor Filme Internacional, os jurados pontuaram que seu filme dá a possibilidade de as pessoas seguirem sonhando em meio a tantas dificuldades econômicas e políticas. Isso representa o longa com fidelidade e a sua própria visão de cinema?
Eu me sinto contemplado, sim, por essa fala. Mas, às vezes, com uma leitura mais apreciada da frase, pode dar a entender que é um sonho ingênuo. No caso de Marte Um, tem um espaço de projeção de intenção tão grande, que ela me parece ser a única forma necessária. Muitas vezes quando se faz um gesto utópico, ele pode ser confundido com algo ingênuo. Mas essa utopia carrega nossos projetos com intensidade para o futuro, faz com que a gente tenha mais paciência e que a gente não desista de imediato quando a gente se encontra com o primeiro obstáculo.
- No filme, todos os personagens possuem profundidade e enredos próprios. Por onde a história lhe chegou? Foi desde sempre o Deivid que lhe guiou para a construção da história da família?
Deivinho foi quem guiou o pensamento desde lá de trás. Ele é o fio que começa a desenrolar e de onde essa tecelagem começa a ser feita. Ele é o grande ponto que vai unindo essas quatro histórias, que têm importâncias iguais, mas é o Deivinho que vai fazer tudo olhar adiante. É nele que começa o filme é nele que a gente vai para o espaço.
- O caminho da autoficção foi algo que você sempre buscou percorrer ou percebeu no estágio da produção do filme em si?
Não sei se posso configurar como autoficção porque talvez seja algo mais “livremente inspirado”. Mas não é só a minha história, mas a história de muitas pessoas parecidas comigo, coisas que eu vi. Não sei se essa é a melhor denominação, mas, óbvio, que tudo que parte do campo pessoal está lá desde o início. Acho que eu entendia a maior parte das coisas, mas muitas, confesso, estou entendendo agora que concluí o filme. Estou descobrindo coisas que falam sobre mim e conscientemente eu não me toquei durante o filme.
- Você consegue fazer uma ligação de ‘Marte Um’ com outros nacionais que ele dialogaria, em especial nesse contexto de revelar um drama social e político pelo microcosmo de uma família de classe média baixa brasileira?
Eu consigo ver paralelos que me influenciaram. Eles não usam black-tie (longa de 1981, dirigido por Leon Hirszman), de alguma forma, apesar de ser um filme bastante distinto na questão do tom, ele tem uma relação forte ali de pai e filho, e de como uma família reage em meio a mudanças que podem ter a ver com política. Obviamente com o nosso próprio trabalho em Ela volta na quinta, que também está em um tom totalmente diferente e, sem dúvida alguma, ressoa na minha cabeça como possibilidade de entender um filme guiado pelo cotidiano de uma família. Um pouco o Bróder, de Jeferson De. Marte Um é um filme bem particular, mas é influenciado por outras esferas, porque essa relação familiar ela não é totalmente ausente no cinema brasileiro. O Central do Brasil, como filme que se utiliza de uma identidade forte brasileira para poder falar de várias questões através de detalhes, pensando na jornada de uma mulher e um menino para falar de Brasil, sem dúvida alguma, eu me comunico com isso.
- Quando você percebeu que tinha um grande filme nas mãos?
Nunca tive facilidade para poder enxergar se Marte Um seria um filme grande. Eu pude entender no primeiro contato com os atores, quando eles começaram a ler as falas, que, independente de onde esse filme chegasse ou a quem chegasse, seria um filme muito sincero, e isso para mim seria mais que o suficiente. Não importava se ia ganhar prêmio, se iria passar em 10 salas e morrer em uma semana, ou se iria ampliando o circuito, como está indo agora. O importante é que fosse um filme verdadeiro comigo, com a história do produtor, com a equipe e o elenco que fez o filme.
- ‘Marte Um’ tem causado comoção nas pessoas. Fazendo uma análise que talvez extrapole suas funções de cineasta, por que os espectadores estão tão sensibilizados por essa história?
O filme sensibiliza as pessoas porque ele é um filme de complexidade humana. Ele coloca no centro uma família, que podemos não dizer que representa várias famílias brasileiras, mas de alguma forma, cinematograficamente, ela sintetiza muitos sentimentos. Família negra e periférica, como temos várias no Brasil. Mas para além desse grupo do qual os personagens fazem parte, o filme os complexifica. Ele cria dramas e coloca questões que fazem as pessoas se aproximarem do filme. Sinto que isso é um ponto de identificação que é forte porque o filme te permite rir, chorar e te lembra que você tem emoções. Acho que isso não é uma coisa tão comum, ou pelo menos há um bom tempo a gente não tinha uma relação com o filme nacional nesse lugar.
- Para um filme estar na lista final de concorrentes de Melhor Filme Internacional do Oscar é preciso investir em marketing e publicidade. Você terá apoios públicos e privados para isso? Você teme que ‘Marte Um’ sofra devido ao boicote que o Governo Federal impõe a produções cinematográficas?
Estamos neste momento buscando os apoios públicos e privados para poder acontecer. Nesse caso, é uma corrida. A gente está pouco a pouco construindo esse orçamento com muita responsabilidade. Já conseguimos alguns apoios. Existe muita boa vontade de prefeituras de Contagem e Belo Horizonte, de empresas que já estão com a gente. Eu não tenho medo que Marte Um sofra boicote do Governo Federal, porque ele já está boicotando o cinema há pelo menos quatro ou cinco anos. Não é agora que isso vai surtir efeito porque Marte Um já está selecionado e inscrito, então essa trajetória vai seguir independente do Governo Federal. A verba que a Ancine antes dava e hoje não dá mais seria fundamental e seria o justo porque é um produto brasileiro e é algo que representa o Brasil. Cabe ao Governo Federal entender o seu lugar e vir junto com a gente.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 11 de setembro de 2022.