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A formação da Paraíba assombrada

publicado: 16/08/2023 09h32, última modificação: 16/08/2023 09h32
‘As Madrinhas da Rua do Sol’ traz nove contos que se interconectam por temas como violência e imigração
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Este é o quinto livro de contos de João Matias, escritor cearense radicado na Paraíba - Foto: Divulgação

por Joel Cavalcanti*

O escritor João Matias constrói seus livros de contos como quem estruturasse a narrativa de um romance. Todos os nove textos presentes em As madrinhas da Rua do Sol (Caos & Letras, R$ 45), obra atualmente em pré-venda no catarse, se interconectam por um tema, que neste caso é a Paraíba assombrada. “O que assombra é a violência urbana, o desencaixe dos personagens que vêm da imigração da Zona Rural para a cidade. O que assombra é a incompletude que esses personagens sentem, uma vez que se deparam com um contexto que não é o deles”, descreve o autor cearense radicado na Paraíba.

Estilisticamente, João Matias desenvolve seu quinto livro de contos através de uma linguagem seca e volátil para construir um terror urbano, psicológico e com viés de ficção científica que coloca em seu enredo a Paraíba desde sua formação contemporânea até o ano de 3050. João Pessoa está retratada na obra como uma cidade atravessada pela tradição e pela modernidade, sendo rural e urbana ao mesmo tempo. Em uma análise da trajetória literária do autor a partir de seu livro anterior, é possível perceber logo de saída o deslocamento espacial realizado na conjuntura das obras. Se em Santos do Chão Bravo (2022) a história é permeada por imigrantes que saíram de grandes cidades para ocupar de forma violenta e exploratória os Sertões nordestinos, em ‘Madrinhas’ o caminho idealizado é inverso: são os imigrantes da zona rural que vão para a cidade.

“Os contos estão inter-relacionados na proposta de contar a história da construção de uma cidade a partir da perspectiva dos imigrantes e tudo que se encontra relacionado à vida desses personagens. Cada conto se passa em uma rua diferente de João Pessoa”, cita Matias. Em um dos contos que se passa na Rua da Areia, o que aterroriza, por exemplo, são dois homens numa moto. Como se trata de um texto com elementos do fantástico, o som dessas motos pode ser ouvido 24 horas por dia na rua, conhecida por abrigar antigos cabarés da capital. “É um pouco do terror psicológico utilizado por Kleber Mendonça Filho, em ‘Som ao redor’. Essa é uma influência clara para minha proposta”. Nessa proposta, João Matias demonstra uma preocupação acentuada com a concepção das imagens e com a descrição detalhada dos espaços da cena.

O terror em ‘Madrinhas da Rua do Sol’ está permeado por questões domésticas, questões urbanas e a que atravessa os laços familiares, afetivos e de amizade. O conto que dá nome ao livro se refere a um bloco tradicional de Carnaval, que poderia facilmente ser o Muriçocas do Miramar. Em um futuro distópico imaginado pelo escritor, o festejo popular se mistura com blocos militares em um contexto de um estado vivendo sob um regime ditatorial dominado pelas Forças Armadas. “‘As Madrinhas’ é um conto chave e remete às pessoas que construíram a cidade e o bloco carnavalesco, que são sobretudo mulheres, chamadas de Madrinhas. Essa é uma espécie de ancestralidade de criação da cidade”. Todos os textos da obra se passam na capital paraibana, à exceção de ‘Deserção’, conto que fecha o livro na Princesa Isabel de 1930.

São várias as influências que norteiam a criação literária de João Matias, e passam obrigatoriamente por nomes como Dalton Trevisan, Murilo Rubião, Lygia Fagundes Telles, Silvina Ocampo, Flannery O’Connor e Cormac Mcarthy. Mas a textura da linguagem vem confessadamente por um fluxo ‘Cabralino’. “Como João Cabral de Melo Neto, a linguagem tem que ser cortante feito uma faca, áspera como uma pedra. Essa linguagem aproxima o personagem do ambiente. Ela remete ao modo como o espaço, a arquitetura da cidade, interage com a psique e subjetividade dos personagens. É como se a pessoa e o ambiente ao redor, os prédios, as ruas e as estruturas da cidade fossem uma coisa só”, relaciona o escritor natural de Juazeiro do Norte (CE).

Atuando profissionalmente também como roteirista, Matias é poroso para as estruturas narrativas do audiovisual. “Penso ‘As Madrinhas da Rua do Sol’ como uma série de TV, com um universo próprio, como Black Mirror, por exemplo. O maior desafio é na concepção desse universo em que ele vai se ambientar e em que todos os contos têm que seguir essa filosofia. Seria como um gênero ambíguo, entre o conto e o romance, ou contos seriados”. Essa disposição de receber toda a sorte de influência é o que ajuda a justificar que tantas obras paraibanas recentes venham buscando cada vez mais enveredar por gêneros como a ficção científica, as distopias, os realismos mágicos e os insólitos.

“Estamos vivendo um momento muito rico. Temos autores dos mais diversos, fazendo gêneros dos mais diversos, de múltiplas influências na literatura. Vivemos um ‘boom’ paraibano. Passamos por várias mudanças na história do país e da Paraíba. Buscamos novos desafios de retratar o estado de forma diferente, em que os dramas e as estéticas desafiem para pensar coisas que ainda não foram pensadas dentro no universo nordestino. É uma Paraíba mais moderna e mais suscetível a essa confluência de gêneros e estilos”, conclui João Matias.

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Com edição da Caos & Letras, o livro está em pré-venda até 8 de setembro - Imagem: Divulgação

Trecho do conto Edifício Concorde

“Era comum como a goteira do apartamento de cima sob o piso do meu banheiro ver malas de dinheiro caindo do céu no Edifício Concorde. O domingo era todo tédio e dinheiro caindo do céu. Papel barulhado, a sinfonia. Já não se sabia por que motivo, que estranho fenômeno natural ou misterioso fazia com que as malas de dinheiro caíssem do céu, mesmo com a polícia andando dia após dia à procura de um possível cidadão que as estivesse atirando pelas janelas. O edifício, encoberto por uma nuvem nebulosa no meio da Avenida Epitácio, não deixava que a visão alcançasse seu final. As malas de dinheiro vinham de lá. Uma por uma, derrubando notas de cem reais que com o vento alcançavam a orla marítima e adoeciam a inflação. Há dias João Pessoa não dormia bem.

O Edifício Concorde é velho, carcomido, repleto de histórias sombrias, injúrias e negociatas, igual a todos os homens que em sua idade se conformam às estruturas do tempo. Assim, se via umidade, infiltrações, paredes rachadas, piso quebrado, portas mambembes. Mas o Edifício ganhou essa atenção especial agora enquanto os guardas andavam pelos corredores, investigando o fenômeno. O som que vinha de fora era de pernas e mais pernas, andares e mais andares, como se sapateassem sobre sua cabeça uma estranha polca. Por outros motivos, já não sentia gosto pela vida. Gosto nenhum para dizer a verdade: o café preto desce amargo e com sabor de vômito, enquanto olho pela janela e vejo a população andar indiferente entre as notas de cem reais que, levadas pelo vento, até incomodam.”

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 16 de agosto de 2023.