Um sexagenário é um dos maiores símbolos da música underground da Paraíba. No último sábado, dia 2, Totonho, ou Carlos Antônio Bezerra da Silva, completou 60 anos sendo a personificação da expressão sonora que tem amor pelos submundos. Conjugando o profético no mesmo tempo do poético, Totonho canta a cidade a partir da moral questionadora das favelas. No amor, é sempre o incapaz de conquistar a mulher desejada. O submundo que vem também do som que sente os pés nos quintais de Jaguaribe, mas sonhando que um cabra-móvel o leve a morar em um conjunto habitacional de outro planeta.
Nos ritmos, Totonho nasceu do repente de Pinto de Monteiro e do forró de Flávio José, e buscou sempre se emaranhar com a origem periférica do funk e do coco, do brega e do rap. Tudo isso em uma base eletrônica de fio desencapado. Quando Totonho vai estourar? “Se eu não ganhei dinheiro e nem fiz patrimônio até essa idade, então para mim o importante é zoar. É zoar, é incomodar, é tirar as coisas do lugar. Se isso já era um compromisso, isso triplica a essa idade”, anuncia o filho de Dona Luzia do Bolo. A pergunta “Quando Totonho vai estourar?” é a lembrança de uma provocação que ele ouve com frequência em sua cidade natal, Monteiro.
“Um dia eu vou fazer uma gravadora chamada Parede. ‘Totonho está estourado na Parede’. Chegando agora a 10 mil seguidores apenas, parece que a vida não rendeu. E a vida rendeu. A vida só não cresceu igual a bolo do forno. Mas rendeu. Deu para comer o que quis, na hora que quis”, responde ele.
A resposta, porém, vem mudando com o tempo. O tempo que passou, que ainda o abisma e espera por interpretação. “Eu nunca pensei em chegar aos 60 anos. Não tem significado ainda, não. Pra mim é mais surpreendente do que qualquer outra coisa. É uma fase de mais desafios. Desafios de terceira idade, desafios de continuar trabalhando politicamente, de saber qual o significado concreto da vida”.
O sentido concreto de estourar e fazer sucesso no mainstream ou no underground não poderia mesmo ser o mesmo para ele através dos anos. Totonho sabia que seria artista desde criança. Aos nove anos de idade criou a banda Os Renegados com instrumentos feitos de lata. Aos 18, se muda para João Pessoa e ajuda a criar o Musiclube da Paraíba, a cooperativa de compositores pela qual passaram nomes como Chico César, Milton Dornellas, Jarbas Mariz, Adeildo Vieira e os irmãos Pedro Osmar e Paulo Ró.
Desse grupo, Chico César estouraria com Aos Vivos, levando Totonho a acreditar que poderia também estourar. Ele conta que na época gravou uma demo e mandou para vinte gravadoras. Só a Trama se interessou pelo trabalho, quando ele já tinha 36 anos.
“O artista que eu quis ser na vida, eu sou. Isso não pode ser confundido com patrimônio, com visibilidade, de forma nenhuma. Nunca tive um impedimento, nem mesmo quando tive as gravadoras que tive, de fazer o que eu queria fazer e ponto. Isso foi também uma lição de tantos outros amigos artistas, que foram moderados pela mídia como Zeca [Baleiro], como Chico [César], como Lenine. Nem tudo é a hiper grana da visibilidade. É uma hora que pode ser a satisfação de ter feito o que fez. Isso é sucesso”, conta Totonho. “Fui muito fiel ao Jaguaribe Carne. Talvez seja um dos principais ‘jaguaribecarneanos’ que ficou para trás do ponto de vista do trabalho experimental, que reconhece o grupo, em contraponto ao Chico César, que participou e que basicamente não cita esse grupo na sua formação”.
Logo após o período no Musiclube, em 1988, Totonho decide se mudar para o Rio de Janeiro para fazer uma pós-graduação. Alguns anos depois, suas composições ganham projeção, ele participa do Projeto Pixinguinha, realiza turnês internacionais e abre shows de artistas como Geraldo Azevedo e João Bosco. Uma vida que ele divide com o trabalho social junto às comunidades, tentando varrer a maldade do mundo com palhas de coqueiro, como diz a letra de ‘Totonho, venha salvar o mundo”. É quando cria a ONG Projeto Ex-Cola, a partir de uma iniciativa de inclusão social no Circo Voador.
“O mundo é uma música buscando por justiça, e isso não se encerra nunca. Uns momentos são mais difíceis do que outros, mas nunca são fáceis. Descobri também o significado mais simples, que hoje faço música muito mais pela minha aldeia. Pelo lugar que eu nasci, pelo significado que ele tem, de uma casta de poetas que vieram de lá. É importante saber disso. É importante dar continuidade e ter respeitabilidade por isso”, considera.
“Quando você compõe uma música que você gosta, você descobre que o seu maior público são músicos, pessoas que entendem música, de jornalista e tudo o mais, você começa a descobrir que o sucesso não necessariamente está no programa de televisão conhecido e ter milhares de seguidores da rede. O sucesso é respirar com paz, com tranquilidade, com alegria aquilo que está fazendo e continuar fazendo. Esse é o grande desafio também na vida”. Persistindo inquieto e com hiatos na carreira, Totonho tem em sua discografia os álbuns Totonho e os Cabra, Sabotador de Satélite, Coco Ostentação, Samba Luzia Gorda e Canções pra Macho Chorar e Roer Unhas, este de 2023.
Como todo homem fadado ao seu destino - raramente piedoso -, Totonho percebe sua trajetória como uma trama de desencontros. “Não tive muita sorte porque quando fui lançar o segundo disco, a gravadora quebrou. Já era o fim das gravadoras no Brasil. Quando cheguei na indústria de disco, a porta já estava descendo e foi em cima da minha mão. É importante saber que a dinâmica da vida não depende apenas de você, mas também não depende totalmente dos outros”. Mas Totonho já tem planejado em sua cabeça todos os próximos projetos.
O seguinte deve ser o lançamento do Portfólio de Guerra, com músicas de rap. Também quer fazer o álbum Funk de Embolada, uma espécie de lado B do Coco Ostentação. Tem ainda o que seria o lado B de Canções pra Macho Chorar e Roer Unhas, que deve ser produzido por Zeca Baleiro, em João Pessoa. No momento, Totonho dá expediente como funcionário público do projeto de inclusão por meio da música do Governo do Estado, o Prima.
É a partir dessa trajetória de seis décadas que ele se arrisca a vislumbrar um futuro, imaginando como seria um Totonho velhinho na cena underground de João Pessoa. “Vou talvez gravar discos de rock and roll barulhentos. E colocar uma câmara de ar numa cadeira de roda confortável para ficar dando pulo da cadeira de roda, sabe? Para frente, para trás”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 06 de março de 2024.