Em um momento de conservadorismo e retrocesso um sinal de lucidez surge no cenário editorial. A Editora CEPE – Companhia Editora de Pernambuco lança a obra Repórter Eros A história do jornalismo erótico no Brasil, do professor Valmir Costa.
Uma pesquisa de fôlego que abrangem desde anos de 1808 até os nossos dias. Começando na literatura como “livros para homens”, pois era feito apenas para homens heterossexuais e é assim que o jornalismo erótico se estabelece segundo o professor Valmir.
A linha que separa o jornalismo erótico da pornografia é tênue, mas importante. Enquanto a busca pela pornografia a emoção direta e o consumo visual de atos sexuais, o jornalismo erótico explora o erotismo com um olhar que valoriza o contexto cultural, comportamental e social. Essa vertente jornalística analisa as transformações nas relações sexuais, afetivas e o próprio conceito de sensualidade, muitas vezes dialogando com questões de gênero, poder e identidade.
Conversamos com o Professor Valmir Costa que falou um pouco sobre sua pesquisa e censura e futuro.
Entrevista com Valmir Costa
Como surgiu à idéia da sua pesquisa? Comente um pouco sobre seu trabalho.
Comecei a pesquisar sobre o assunto ainda na graduação em jornalismo, na UFPE, em 1995, um ano antes de apresentar o TCC, como pesquisa de iniciação científica no CNPq. Na busca de encontrar um tema para o TCC, veio o tema sexo como uma brincadeira, que gerou uma observação óbvia: apesar de ter inúmeras revistas jornalísticas sobre sexo, não havia sobre as origens deste tipo de jornalismo. Por essa falta, fiz análise de revistas de acordo com o gênero/orientação sexual dos leitores. Analisei as revistas Nova, Sexy e SuiGeneris. Apresentada como TCC em 1996, a monografiaganhou o Prêmio Intercom de Jornalismo na categoria graduação em 1997. Segui com o tema no mestrado na USP — finalizado em 2000 — com análise das revistas Playboy, Sexy, Nova, Íntima, SuiGeneris e G Magazine. No doutorado, finalizado em 2006, fiz uma análise comparativa entre revistas brasileiras e norte-americanas. No entanto, faltava essa parte histórica. Tinha coletado algo nesse percurso, mas que só me renderam 13 páginas do total do livro Repórter Eros: a história do jornalismo erótico brasileiro.
Em 2007, tentei uma bolsa de pós-doutorado em História, na USP, pois só se fazia com bolsa. Além do mais, precisava de financiamento para pesquisar na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Não rolou a bolsa. Tentei outras por meio de editais, também não rolou. Com o fim da obrigatoriedade de bolsa, também não consegui supervisor. Em abril de 2019, tentei mais um edital de bolsa de pós-doc. Era a 11ª tentativa. Também não rolou. De lá para cá, a Biblioteca Nacional disponibilizou sua hemeroteca digital. Então, decidi fazer o livro por conta própria utilizando este bando de dados, além das revistas que eu tinha adquirido e outras que procurei em sebos online, entre outras fontes. Em fevereiro de 2020, o original estava pronto. Daí fui procurar as editoras. A Cepe Editora apostou na obra em 2021. De lá para cá, foi um período de releitura para tirar uns trechos, adicionar outros, revisar, revisar, revisar... e publicar. O primeiro evento de lançamento foi dia 20 de julho em São Paulo. Ufa! :-D
Como o jornalismo erótico enfrenta a censura no Brasil? Quais foram os desafios históricos e quais permanecem hoje?
O maior desafio deste tipo de jornalismo é o falso moralismo em torno do tema. As censuras, seja por questões religiosas, seja por parte do Estado, lidam sempre com esse falso moralismo. O jornalismo erótico sempre reagiu diante às perseguições. Só na ditadura de Getúlio Vargas as revistas eróticas desapareceram, mas reapareceram repaginadas pouco tempo depois. Contraditoriamente, durante a ditadura civil militar de (1964-1985), foi um período que surgiram várias revistas eróticas masculinas. Também com uma lei específica, o decreto 1.077, de janeiro de 1970, do governo Médici, como um risco subversivo à segurança nacional. As revistas são proibidas. Depois da reação da ABI, OAB, editoras e outros setores, são publicadas várias portarias. A portaria nº 219, março de 1970, faz um pente-fino nas publicações. Umas são proibidas de circular. Outras recebem o aval do governo com um código estampado na capa. Todas elas, no entanto, têm que passar pela censura prévia. Como os homens estão no poder, permitem publicações eróticas baseadas na objetificação da mulher. Por outro lado, também precisavam destas publicações para exercitarem seus falsos moralismos. Afinal, como guardiões da moralidade brasileira? É uma dupla moral. Este cerco às revistas vai até a anistia em 1979, quando o nu frontal passa a ser liberado em março de 1980. Com isso, surgem diversas revistas pornográficas de sexo explícito nas bancas, sem conteúdo jornalístico. Também filmes nos cinemas. Começam a fazer censura posterior e algumas são cassadas. A censura federal só vai acabar com a constituição de 1988, quando o sexo já estava bastante escancarado.
Você acredita que a produção de conteúdo erótico pode ajudar na educação sexual ou na desmistificação de tabus?
Sim. São duas coisas distintas. Uma da educação sexual no plano científico e pedagógico e outra em relação à libido, ao desejo de ver, de se sentir estimulado e dar vasão à libidinagem. Em alguns momentos, elas se confluem, pois se pode dizer que uma foto de nu não tenha um quê “educativo”, não é? Tudo é informação.
Há espaço para discussão sobre sexualidade de minorias, como a comunidade LGBTQIA+ ou pessoas com deficiência?
Claro! Os devassos, pederastas, sinhazinhas, frangos, frescos, veado, e tantos outros nomes pejorativos, sempre estiveram expostos no jornalismo nacional desde sua origem em 1808. No entanto, com outras formas de abordagem, como pecado, aberração ou como deboche. Quando a homossexualidade deixa de ser crime com a extinção do santo Ofício, em 1821, e como não é considerado crime de forma explícita no Código Criminal de 1830, há um afrouxamento. No entanto, o artigo 280 dava à opinião pública o poder decidir o que eram, ou não,crimes ou delitos contra a “moral” e os “bons costumes”. Este artigo poderia ser usado contra homossexuais. O curioso é que desde aquela época, como na atualidade, os LGBTQIA+ eram vistos como uma “modernidade”. Algo que antes não existia. Da mesma forma o sexo anal, chamado em algumas revistas como “amor moderno”. O livro mostra que até no primeiro cabaré do Brasil, o Alcazar Lyrique (1859), no Rio de Janeiro, os homossexuais já ocupavam aquele espaço, criando uma associação secreta para frequentar aquele espaço de libertinagem entre homens. Também nas páginas da revista masculina O Rio Nu (1898-1916), que aborda os relacionamentos sexuais entre homens. Mostra essa permissividade comum daquela época. Quanto às pessoas com deficiência, há ainda o tabu envolvido.
Como a internet e as redes sociais influenciaram o jornalismo erótico no Brasil?
Não vejo muito como uma influência, mas como uma derrocada. A internet popularizou o erotismo e derrubou as barreiras de um intermediador entre o consumidor. Se para vídeos eróticos, era necessário passar pela locadora. Se para revistas, passava-se pelo vendedor da banca de revista. Com fotos eróticas e pornográficas disponibilizadas na rede, o acesso ficou mais fácil. Melhor. Grátis. Então, isso passa a contribuir para o final desse tipo de jornalismo a partir da década de 2010, culminando na década de 2020. Já as redes sociais e depois com a tecnologia dos smarthphones possibilitaram algo mais intimista entre os usuários. Principalmente com a troca das “nudes” em aplicativos de relacionamento. Então, a internet fragmentou, esfacelou o conteúdo erótico do informativo jornalístico, que as revistas impressas faziam.
A tecnologia de inteligência artificial ou realidade virtual está mudando de maneira como o conteúdo erótico é produzido e consumido?
Ainda é cedo para dizer como isso funciona ou vai funcionar. Mas, com certeza, vai mudar a maneira de consumo desses conteúdos. Afinal, em toda nova tecnologia o sexo é o primeiro a achar guarida nestes espaços. Foi com a imprensa, o cinema, o telefone, o rádio, o computador, o videocassete, a internet...
Como o movimento feminista influenciou a produção de jornalismo erótico no Brasil? Há conflito ou colaboração entre esses dois mundos?
Há várias movimentações femininas ao longo do tempo. Principalmente pelo direito ao voto com o início da República (1889), que se desenrolam com Associação de MulheresBrasileiras — AMB no começo do século 20. No entanto, não tinham um quê erótico, mas ligados ao sensualismo feminino no sentido de conquistar um marido, como mostram as publicações femininas. Elas ficavam sempre no limiar de são serem consideradas vulgares. Já no movimento feminista dos anos 1960, o sexo passa a ser pauta das publicações femininas, como na revista Claudia, lançada em 1961. O tema começa a ser abordado na esfera matrimonial e o tabu da virgindade a ser questionado. Só com a revista Nova (1973-2018), o sexo ganha outra roupagem na imprensa feminina, fora da esfera conjugal. O Women’sLib, como era chamado o Movimento de Libertação das Mulheres pela imprensa local, contribuiu bastante para abordagens do erotismo para mulheres. Inclusive as mulheres lésbicas, que não são aceitas no movimento feminista, e tomam seu próprio rumo. Também por uma abordagem ousada da revista Rose, lançada em 1979, ser “a revista queinforma as mulheres e tira a roupa doshomens”, como dizia seu slogan. Ela apresentava fotos de homens seminus e temas de sexo sem pudor. No entanto, não vingou para as mulheres. Mudou sua linha editorial e tornou-se uma revista gay, quando passa a publicar nu frontal. Com isso, teve o feito de ser a primeira revista feminina e gay com homens em prol do prazer de leitoras e leitores.
Quais são as percepções das mulheres dentro do jornalismo erótico, tanto como produtoras quanto como consumidoras de conteúdo?
Dentro do jornalismo erótico masculino, sempre de forma objetificada. No jornalismo erótico feminino, sempre resguardadas no moralismo em prol do homem. Revistas como Nova e Claudia sempre havia essa preocupação da mulher em relação ao homem. Era eu (mulher) para ele (homem). Nos magazines masculinos, ela (mulher) para mim (homem. Havia sempre a anulação das vontades próprias femininas. Já como consumidoras de algo mais picante, nunca deu certo. Revistas como Rose, Íntima (1999) e Íntima & Pessoal(1999-2000) não deram certo. De igual modo, uma publicação para lésbicas.
Como o jornalismo erótico pode contribuir para a desconstrução de padrões de beleza e narrativas tóxicas sobre sexualidade?
Acredito que não mais. Na minha concepção, ele acabou. Pode estar adormecido e pode ressurgir repaginado mais adiante. Por enquanto, o que teve que contribuir, contribuiu. Mas com a afirmação de padrões estéticos vigentes em cada momento histórico.
Como equilibrar o entretenimento e a objetificação com um conteúdo que também pode ser informativo e respeitoso?
Seria tratar o outro ou a outra como um “objeto de desejo”, como se guiar para a pulsão sexual de complementação — que não vai ocorrer — para com o outro. Não como ocorreu, muitas vezes, como uma objetificação que desconsidera a objetividade do outro (a), com estereótipos, reduzindo o indivíduo apenas para o bel-prazer do outro(a).
Sua pesquisa compre um período histórico bem amplo. Quais curiosidades você encontrou pelo caminho?
Ixe! Várias! O que levou bastante tempo foi descobrir a origem do termo pejorativo “veado”. Eram pesquisa feitas por palavras-chave. Eram “zilhões” desta palavra. Era como agulha num palheiro. Então, foi encontrar um tipo de jornalismo que circulou a partir de 1880 chamado de “imprensa pornográfica” com o jornal Corsário. Escrito por um jovem jornalista negro liberto, Apulcho de Castro, ainda no tempo da escravidão, o Corsário introduz a palavra “pornografia” no vocabulário nacional. Mas não é uma publicação erótica, mas moralista. Divulga os “podres” da elite da época, denuncia prostitutas, cafetões, cafetinas e a corte de D. Pedro II. Xinga muitos estabelecidos. Inclusive de “veado”, mas não no sentido da homossexualidade, mas na esfera do homem heterossexual. O machão, que levava muito chifre, que era muito corno, era chamado de “veado”. Depois do Corsário, outros jornais da “imprensa” pornográfica” foram publicados, como Carbonário (1881-1890) e A Lanterna (1883). Em Carbonário, encontrei os primeiros indícios do termo para se referir pejorativamente aos gays em 1888. Então, segui esta pista. O termo só seria ressignificado a partir de 1903 quando um escândalo envolvendo um riquíssimo empresário com honraria de visconde ocorre em lugar público. Porém, sua fama já corria na boca miúda desde aquele período. Enfim, foi conseguir dar uma explicação para este tema pitoresco.