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A profecia maior do realizador Glauber Rocha

publicado: 05/12/2017 19h05, última modificação: 05/12/2017 19h10
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O diretor de terra em Transe, Glauber Rocha - Foto: Divulgação

tags: glauber rocha , o homem de areia , fundação casa de josé américo


William Costa

O cartaz desta quarta-feira (6) do Cineclube 'O Homem de Areia', da Fundação Casa de José Américo (FCJA), tem tudo para atrair não só a atenção de cinéfilos, como do público em geral. 'Terra em Transe', terceiro longa-metragem de Glauber Rocha (1939-1981), é considerado não só um dos mais importantes títulos da filmografia do diretor baiano, como também um dos mais bem-sucedidos trabalhos do cinema brasileiro, em especial, do Cinema Novo. A sessão única tem início às 19h30, com entrada franca. Após a exibição, o professor e crítico de cinema Fernando Trevas tecerá comentários sobre a obra.

Lançando em 1967, com roteiro e direção de Glauber, 'Terra em Transe' reúne artistas de talento maior, a exemplo de Jardel Filho, Glauce Rocha, José Lewgoy, Paulo Autran, Paulo Gracindo, Jofre Soares, Mário Lago e Paulo César Peréio. O filme foi premiado em Cannes, Havana, Locarno, Juiz de Fora e São Paulo. Em novembro de 2015, o filme entrou na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.

Fernando Trevas antecipou para A União algumas linhas que certamente deverão constar da apresentação que ele fará nesta quarta-feira à noite, na FCJA. Para o crítico, o que torna 'Terra em Transe' tão específico, enquanto filme, e tão significativo para a cultura brasileira, em particular, para a cultura cinematográfica, é o fato do filme de Glauber Rocha é conseguir combinar uma aguda crítica ao momento político que o Brasil vivia após o Golpe Civil-Militar de 1964 e desenvolver uma linguagem cinematográfica ousada e inventiva. “O filme dialoga com o que de mais instigante se produzia no cinema mundial nos agitados anos de 1960”, completa.

Já no que que diz respeito ao diferencial que 'Terra em Transe' estabelece no que concerne à própria filmografia de Glauber, Fernando assinala que com este filme o diretor baiano afirma-se como o mais importante cineasta brasileiro e antecipa rupturas políticas e de linguagem. “É quase uma premonição dos rumos sombrios que o regime autoritário vai trilhar com a decretação do AI-5 (dezembro de 1968), a institucionalização da ditadura. Glauber e outros cineastas são forçados ao exílio e suas carreiras são marcadas por esse autoritarismo”, destaca.

Levando-se em conta o contexto social do Brasil contemporâneo e àquele metaforicamente representado no filme de Glauber, é possível falar de uma “atualidade” de 'Terra em Transe'? A esta pergunta, Fernando responde lembrando do crítico Paulo Emílio Salles Gomes, um dos fundadores da Cinemateca Brasileira, que já havia dito que Glauber tinha o dom de profetizar. “No caso de ‘Terra em Transe’, estão expostas de maneira aguda questões ainda em voga hoje, tais como o autoritarismo, o desprezo pelo povo e os poderosos interesses internacionais dominando a cena política”.

De modo mais específico, Fernando irá discutir, após a projeção de 'Terra em Transe' no Cineclube 'O Homem de Areia', a inserção do filme no contexto político do momento da sua realização (1967) e refletir de que forma as opções narrativas de Glauber Rocha dão conta de um tema complexo que é o drama político não apenas do Brasil, mas da América Latina, África e Ásia, vítimas do colonialismo e do neocolonialismo. “No seu texto-manifesto ‘A Estética da Fome’, Glauber antecipa algumas dessas questões”, indica.

Fernando não tem dúvidas de que 'Terra em Transe' é um filme dolorosamente atual, o que, segundo ele, comprova a força da obra de Glauber e a fragilidade do Brasil ante os interesses que insistem em condenar um país rico ao atraso e à dependência. “Depois de 50 anos, Glauber e seu filme continuam atualíssimo. Ainda estamos em transe”, sublinha.

O presidente da FCJA, Damião Ramos Cavalcanti, comentou que 'Terra em Transe' chega aos 50 anos maduro e atual, como arte representativa de conflitos, angústias e opiniões. Segundo ele, de tudo que se falou sobre o filme, uma avaliação se consagra: É obra prima de Glauber Rocha. E acrescenta: ‘‘’Terra em Transe’ também retrata momentos aflitivos da política brasileira, que não deixa de nos transtornar, como se estivéssemos, atualmente, numa terra em transe. O enredo foi rodado em circunstâncias de repressão, quando a democracia brasileira passava por um período de exceção. Mas suscita esperanças, talvez proféticas ou talvez apenas desejo de uma utopia”.

A crítica é unânime na consideração de que 'Terra em Transe' radicaliza no estudo da situação nacional, colocando em cena um leque de personagens - militantes, militares, intelectuais, políticos e empresários - que se engalfinham na luta pelo poder. O cenário destas disputas - que tanto pode ser o Brasil pós-64 e pré-68, como a América Latina por inteiro -, é “Eldorado, país interior, atlântico”. A conjuntura é emblematicamente pré-revolucionária, com reação golpista de um movimento de direita.

De acordo com a sinopse da obra na Wikipédia, Paulo Martins (Jardel Filho) é um jornalista idealista e poeta ligado ao político conservador em ascensão e tecnocrata Porfírio Diaz (Paulo Autran) e à amante dele, a meretriz Sílvia (Danuza Leão), com quem também mantêm um caso formando um triângulo amoroso. Quando Diaz se elege senador, Paulo se afasta e vai para a província de Alecrim, onde conhece a ativista Sara (Glauce Rocha). Juntos eles resolvem apoiar o vereador populista Felipe Vieira (José Lewgoy) para governador na tentativa de lançarem um novo líder político, supostamente progressista, que guie a mudança da situação de miséria e injustiça que assola o país.

Ao ganhar a eleição, Vieira se mostra fraco e controlado pelas forças econômicas locais que o financiaram e não faz nada para mudar a situação social, o que leva Paulo, desiludido, a abandonar Sara e retornar à capital e voltar a se encontrar com Sílvia. Aproxima-se de Júlio Fuentes (Paulo Gracindo), o maior empresário do país, e conta-lhe que o presidente Fernandez tem o apoio econômico de uma poderosa multinacional que quer assumir o controle do capital nacional.

Quando Diaz vai à disputa da presidência com o apoio de Fernandez, Fuentes cede um canal de televisão a Paulo, o qual o usa a fim de atacar o candidato. Vieira e Paulo unem-se novamente na campanha da presidência até que Fuentes trai a ambos e faz um acordo com Diaz. Paulo quer partir então à luta armada, porém Vieira desiste.

O crítico Sérgio Rizzo assinala que 'Terra em Transe' apresenta um Glauber Rocha no auge da forma, ou seja, senhor de sua proposta cinematográfica, acima de tudo, da “linguagem glauberiana”, e mostra como o Brasil e, de certo modo, a América Latina, se organizavam, social, político e religiosamente, naquela época. O filme, segundo Rizzo, é uma espécie de continuação de 'Deus e o Diabo na Terra do Sol', com a diferença que se afasta do coração do Nordeste brasileiro, para enveredar pelo continente, que se encontrava numa crise de desesperança.

Para Rizzo, hoje se percebe com mais clareza o que 'Terra em Transe' significa no que diz respeito ao cenário sociopolítico brasileiro. Naquela época, de acordo com o crítico, o grande público não pode alcançar o verdadeiro horizonte para o qual o filme apontava, como também para as especificidades da proposta estética de Glauber, como, por exemplo, a influência do diretor francês Jean-Luc Godard.