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A volta do super-8

publicado: 18/03/2024 10h14, última modificação: 18/03/2024 10h14
‘Conserva’, da nova geração de curtas paraibanos feitos no formato, é premiado em festival na Argentina
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Fernando Teixeira em ‘Conserva’, curta que faz parte do projeto que dialoga com movimento forte do cinema paraibano dos anos 1970 e 1980 | Foto: Divulgação

por André Dib*

Entre meados dos anos 1960 e 1980, toda uma produção documental, ficcional e experimental só foi possível pela existência de um sistema desenvolvido pela Kodak a partir de películas de tamanho reduzido. Capazes inclusive de gravar som sincronizado, o filme super-8 foi uma alternativa bem mais acessível, se comparada aos formatos profissionais daquela época, o 35mm e 70mm.

Daquela época em diante, a chamada “bitola nanica” pode ter mudado de função, mas nunca deixou de ser utilizada. Presente em produções recentes, como Era uma vez em Hollywood, de Quentin Tarantino, e Os Fabelmans, de Steven Spielberg, o super-8 cumpre o papel de recurso estético-narrativo também em produções independentes, como nos filmes de Kleber Mendonça Filho, que utiliza a película tanto em seu primeiro curta ficcional Enjaulado, como em seu último documentário, Retratos Fantasmas.

Recentemente, um grupo de realizadores se destacou pelo projeto 8x8 – Renovação do Ciclo do super-8 na Paraíba. Os oito curtas têm circulado individualmente e em conjunto, por festivais como Tiradentes e Brasília, além de eventos dedicados à bitola. Em fevereiro veio o prêmio mais recente: o de melhor curta no festival Cine Cannabico, na Argentina, para o curta Conserva, de Diego Benevides. No próximo mês os curtas serão exibidos em sessão especial no Festival Inflamável, em Santa Catarina, e futuramente, na Cinemateca Brasileira em São Paulo.

“São filmes muito especiais”, diz Fernando Trevas, organizador do livro (e projeto de preservação) Cinema e Memória: o Super-8 na Paraíba nos Anos 1970 e 1980. Para Trevas, a atual apropriação pelo projeto 8x8 potencializa o experimentalismo e a ousadia. “E tem outra coisa interessante, o que não se tinha na época, que é o preciosismo de observar questões de fotografia e as especificidades materiais da película super-8”.

De acordo com Gian Orsini, coordenador do projeto com Mariah Benaglia, a intenção do 8x8 é a de conectar essas duas gerações. Para realizar o novo projeto foi preciso enfrentar desafios de ordem técnica, estética e narrativa. “Cada realizador e realizadora recebeu dois cartuchos de filme e uma infraestrutura mínima de produção e de som direto, além também de uma estrutura de pós-produção”, conta Orsini. “A temática e as escolhas estéticas são totalmente livres, a cargo de cada um e cada uma”. A montagem foi feita em suporte digital.

“Para mim foi a concretização de um desejo”, diz a realizadora Ana Bárbara Ramos, diretora de Cósmica. “Me interessa pensar o cinema como algo muito próximo, uma artesania, uma proposta de delicadeza, de olhar para as pequenas coisas. E o super-8 me dá esse contorno para pensar os filmes dessa forma. Claro, com o digital isso acontece, mas tem uma diferença, porque na medida em que no digital eu gravo, apago e produzo uma possibilidade infinita de imagens, no suporte analógico eu tenho uma quantidade limitada de filme e preciso manusear essa câmera, o que torna tudo ainda mais desconhecido”.

Ana Bárbara também lembra da importância de o projeto 8x8 realizar a ponte entre gerações: a que começou com no início dos anos 1980, com a criação do Núcleo de Documentação da UFPB (Nudoc) e os intercâmbios com a Associação Varan (França) e a dos realizadores que começaram na bitola magnética ou já no suporte digital. Um deles, Torquato Joel, foi convidado para participar do projeto.

Realizador de dezenas de curtas, entre eles, Censura Livre (cujos trechos podem ser vistos recentemente em Retratos Fantasmas) e o recente A visita, com imagens inéditas da passagem de Lula pelo Recife em 1982, Ivan Cordeiro afirma que estamos vivendo a renascença do super-8. No texto a seguir, enviado de Los Angeles, onde vive, Ivan repassa as mudanças da bitola ao longo das décadas.

O depoimento de Ivan Cordeiro

“Se há uma palavra que traduz o ressurgimento do super oito e/ou simplesmente a continuação dessa bitola é a resistência. Esses cartuchos da Kodak lançados em 1965 foram sucesso total de vendas em todo mundo. Era simplesmente a continuação do filme 8mm, mas engenhosamente embutidos num cartucho fácil de usar com câmeras muito práticas também.

O sucesso comercial dessa nova bitola foi estrondoso até que o digital surgiu como nova tecnologia. O advento digital não somente prejudicou a bitola super-8 como todas as outras bitolas em 16mm, 35mm e 70mm. Era difícil para um produtor justificar um orçamento mais alto para fazer a fotografia de suas obras, enquanto as empresas que lançaram produtos digitais investiram em engenharia de ponta aperfeiçoando suas câmeras e suas condições de armazenamento.

Durante o período de 1982, quando a última câmera super oito foi fabricada, até 2007, a película super-8 ficou entregue a companhias que continuaram acreditando em filme, atuando como um proxy da grande Kodak, e permitindo que filmes continuassem vivos com manutenção de processo de laboratório, vendas e aluguel de câmeras. Muitas empresas faliram e outras tiveram que se adaptar ao mercado graças a insistência de pessoas que filmavam ainda casamento, artistas independentes, puristas, escolas de cinema e alguns produtores que ainda usavam película em suas produções.

No entanto, após algum tempo, o surgimento da alta resolução possibilitou outra vez aquilo que o super-8 tem de melhor, que é a sua acessibilidade. Uma nova geração vinda das redes sociais começou a conhecer essas imagens via internet e se apaixonaram pelo look de sonho que  somente o filme consegue trazer artesanalmente. Além do mais numa época de planilhas e coisas pré-planejadas com logaritmos o super-8 trazia novas emoções, às vezes agradáveis, às vezes desagradáveis. Sentimentos como expectativa e surpresa se tornaram virais para essa geração que adotou a película super-8 como forma criativa para seus trabalhos. Voltava-se a dar valor à experiência. Aquele sabor que o digital parecia ter camuflado com seu manto de camadas previsíveis.

Essa nova demanda fez com que a Kodak voltasse a fabricar os filmes super-8, assim como outras companhias apareceram oferecendo serviços possibilitando assim uma espécie de renascença da querida bitola nanica.

Eu presenciei todas essas fases e nunca abandonei a bitola que me formou. Ela é como rever um bom amigo que sempre está lá e que mesmo à distância a amizade sempre continua funcionando, como aquele lindo barulho de uma câmera quando você coloca um cartucho novo. Esse renascimento me proporcionou também restaurar centenas de filmes que estavam esquecidos em vários países, trabalhando com toda a espécie de imagens. A minha maior alegria é poder aproveitar o que se considerava perdido e depois ficar recompensado com a satisfação do sorriso da pessoa com o resultado final”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 16 de março de 2024.