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Acerto com o passado

publicado: 05/09/2025 09h05, última modificação: 05/09/2025 09h05
Irene Dias Cavalcanti lança hoje seu livro de memórias, contando como, com sua poesia erótica, enfrentou uma sociedade conservadora
2025.09.04 Irene Dias Cavalcanti © Leonardo Ariel (42).JPG

Do alto dos seus 98 anos, a escritora fala da relação com a vida e a arte | Foto: Leonardo Ariel

por Esmejoano Lincol*

“Meu útero carrega a geração futura”. O verso simbólico da potiguar e quase centenária Irene Dias Cavalcanti transporta a maternidade e a feminilidade do particular para o pessoal, resumindo, ainda, o pioneirismo da autora: ela desbravou a literatura paraibana e masculina dos anos 1970 com suas poesias sem rodeios, falando de sexo e de amor, enfrentando, nesse ínterim, preconceitos. A autora traz a público, hoje, o livro de memórias Irene Dias e Noites, editado pelo Centro de Comunicação, Turismo e Artes da Universidade Federal da Paraíba (CCTA/ UFPB). O lançamento será realizado nesta sexta-feira, a partir das 19h, na sede da Academia Paraibana de Letras (APL), Centro da capital. 

O livro que será lançlado hoje, na Academia Paraibana de Letras | Foto: Divulgação/CCTA

Neste lançamento, Irene ganha a companhia das também escritoras Vitória Lima e Neide Medeiros — esta, autora do prefácio incluído nesse novo projeto. O livro está dividido em quatro capítulos, que vão da infância à maturidade; todas essas épocas ilustradas são com fotos de arquivo pessoal e com um ensaio emblemático do jornalista e realizador Machado Bittencourt, dos idos de 1970.

“Pensei muito para escancarar isso tudo, passei noites pensando se daria certo. Porque minhas memórias, muitas vezes, não são muito alegres. Mas eu pensei assim, ‘O que é que tem?’. Não é uma obrigação a vida de uma pessoa ser alegre ou triste. A vida é como é e acabou”, assevera, em conversa com A União.

Dentre as lembranças dolorosas está a incompreensão dos pares, quando passou a tornar públicos seus textos, a partir dos seus dois primeiros livros – Eu, Mulher, Mulher (1971) e Literótica (1974), o último, pautado por uma “linguagem biológica” (como ela define sua literalidade). Ambos ganharam uma reedição, pela Editora da UFPB, em 2013.

Ela recorda o episódio em que foi convidada para integrar um sarau e a reação dos presentes ao poema “VII”, uma ode ao pênis. “‘Forte / Valoroso / Erguido / Não vem / Embalar / Meu Triste Devaneio’. Nesse dia, arrancaram o microfone de mim e imediatamente mandaram alguém recitar uma poesia com Nossa Senhora, para ‘exorcizar’ as minhas loucuras”, assinala.

Quanto às memórias alegres, Irene relata com carinho a infância em Campina Grande, o contato com os pais (Francisca e Luiz Lucas), e sua gênese nas letras, antes de entender que o que fazia era poesia. Todas as vezes que alguém lhe tratava com gentileza, ela presenteava esse alguém com um bilhetinho rimado.

“Tinha nove ou 10 anos e, na rua, havia valas abertas para passar o encanamento. Caí em uma delas, ficando com uma perna dentro do buraco e a outra para fora. Fui resgatada por funcionários da antiga Alfaiataria Globo — eles correram e me acudiram. Num bilhete, escrevi assim: ‘A alfaiataria Globo da cidade é a mais decente. Tem por ela uns alfaiates muito inteligentes’, uma coisa pueril, de criança”, remonta.

Recusando Antígona

A trajetória na literatura não cessou com o passar dos anos, mas permaneceu oculta durante o tempo em que esteve casada. Os poemas manuscritos eram guardados em um cofre, ao passo que qualquer tentativa de expressão artística de Irene era tolhida pelo esposo — ela teve que declinar do convite para atuar em Antígona, numa montagem de William Maux.

Seus dois livros de poemas foram compilados em uma edição de 2013 | Foto: Divulgação/Edufpb

“Ele não me deixava trabalhar fora. Meu esposo morreu em 1970. No ano seguinte, publiquei meu primeiro livro. Não me casei depois disso, porque passei a prezar pela minha liberdade. Também trabalhei em jornais como A União, Correio da Paraíba e O Momento; neste, eu escrevia justamente sobre o ‘tema do momento’”, destaca.

Ela atribui ao crítico Virginius da Gama e Melo os primeiros textos acolhedores sobre o seu trabalho, que destoavam daqueles que, em coro, viravam-lhe o rosto, inclusive literalmente. A partir dos anos 1990, com ânimos mais assentados junto aos colegas e aos leitores, enveredou pelo romance, abordando, nesse segmento, temas sociais como em A Menina do Velho Senhor (1996) e O Amor do Reverendo (2009).

“De qualquer maneira, eu fui mais aceita pelos homens do que pelas mulheres. Não fiquei frustrada porque a gente tem que aceitar as ideias de uns e de outros. Hoje está melhor. Mas a mulher nunca teve direito a amar como queria”, afirma.

Fazendo um balanço de seus 98 anos de vida ao mesmo tempo em que mira o futuro, Irene Dias Cavalcanti lamenta que problemas sociais como a fome e as ameaças à soberania nacional, recorrentes no último século, permaneçam na “pauta do dia”. Mas ela faz questão de frisar que luta por dias melhores por meio de uma ferramenta que segue utilizando: o voto, a cada nova eleição.

“Nesse livro, com 198 páginas, eu faço apenas um resumo de tudo isso. Eu acho que a idade cronológica que eu tenho, que é muito avançada, não tem nada a ver com deixar de fazer isso ou aquilo. Na minha cabeça, a mentalidade é quem comanda. Eu ainda crio como se tivesse 15, 16 anos. E eu quero ir sempre avante”, conclui.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 5 de setembro de 2025.