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tributo

Adeus a um dos mestres da fotografia

publicado: 05/01/2024 08h40, última modificação: 05/01/2024 08h40
Professores e profissionais do audiovisual falam sobre o legado deixado pelo paraibano Manoel Clemente
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Por trás da câmera, Manoel Clemente nos bastidores de ‘O País de São Saruê’ - Foto: Reprodução

por Guilherme Cabral*

“Manoel Clemente foi fundamental para que eu realizasse, há mais de meio século, meu primeiro longa-metragem, O País de São Saruê. Sem ele, esse filme não teria sido produzido, porque, na época, eu não tinha condições financeiras e Clemente foi quem se dispôs a ser o diretor de fotografia, sem custo algum. Ele também foi peça fundamental para o início do meu trabalho como cineasta, pois me ajudou como assistente de fotografia no meu primeiro curta, Romeiros da Guia, que codirigi com João Ramiro Mello”. Foi o que disse o cineasta paraibano Vladimir Carvalho, referindo-se ao fotógrafo Manoel Clemente, que morreu aos 90 anos de idade, por causa de infarto agudo do miocárdio ocorrido na última quarta-feira (dia 3), em João Pessoa, onde o corpo foi sepultado ontem, no Cemitério Santa Catarina, no Bairro dos Estados.

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Manoel Clemente atuando como professor na UFPB - Foto: Paraíba Criativa/Divulgação

Vladimir relembrou mais sobre Manoel Clemente na realização do seu longa de estreia, que ficou por quase uma década engavetado pela censura no país. “Clemente foi um companheiro e formamos quase que uma dupla, porque tive como assistente de produção Walter Carvalho em O País de São Saruê. Ele tinha o olho privilegiado. Chamavam a atenção as fotos que fazia para o Jornal A União, quando trabalhava cobrindo as viagens dos então governadores da Paraíba Pedro Gondim e João Agripino. Eu vi aquilo e o chamei para ser assistente de fotografia em Romeiros da Guia”.

O cineasta afirmou que Clemente era “um profissional solidário e intuitivo, pois não tinha curso, já que o cinema só chegou à UFPB anos depois, onde passou a se dedicar ao magistério. Foi uma experiência humana e profissional inesquecível e, por isso, deixou um legado extraordinário. Ele se conduziu à altura”, comentou Vladimir Carvalho.

Professor e coordenador do Nudoc, João de Lima lembrou que Manoel Clemente sempre agiu de forma solidária e competente como profissional. Ele tinha se encontrado pela última vez na festa natalina da Adufpb, realizada no último dia 22. “Trabalhei com Clemente em, pelo menos, oito vídeos e filmes para o Nudoc e a TV Cultura, de São Paulo. Foi um mestre da fotografia criativo, que com poucos recursos conseguia fazer coisas maravilhosas e o curioso é que ele não tinha preconceito nenhum, pelo contrário, pois trabalhava com o analógico e o digital e gostava de aprender”, observou ele.

Ex-aluno de fotografia de Clemente, o docente do curso de Cinema e Audiovisual da UFPB Matheus Andrade lamentou a sua morte, a quem – como pesquisador da área – dedicou esforços acadêmicos para a preservação de sua memória. “Manoel Clemente foi um fotógrafo de relevância nos anos 1960 que imprimiu, com muita harmonia, o preto e branco, de modo cru, a fotografia com toda sabedoria, apesar das condições precárias. Era uma fotografia com destreza no movimento de câmera e enquadramento para contar a história”, disse ele, que ainda destacou que O País de São Saruê foi eleito, pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema, como um dos 100 principais filmes da história do país.

Nascido em João Pessoa, Manoel Clemente iria completar 91 anos no dia 17 de março. O jornalista Herbert Clemente confessou que seu pai foi a inspiração que o levou a também enveredar pelo fotojornalismo. Herbert lembrou que, durante dois anos, estagiou em A União, onde produziu matérias e, às vezes, algumas imagens. “Nós vivíamos tranquilos e – como quem o conhecia sabe – papai tinha um jeito reservado. Vamos tentar fazer o máximo que puder para preservarmos a sua memória. Vamos verificar o seu acervo pessoal e, depois isso, ir atrás do que possa vir a ser feito por alguma instituição, como a UFPB”.

O diretor executivo do Fest Aruanda, cineasta e professor Lúcio Vilar, garantiu não ter dúvidas de que “depois de Walfredo Rodriguez, nos anos 1920, Clemente foi o mais importante fotógrafo paraibano da segunda metade do século 20. Ele foi, além de braço direito de Vladimir Carvalho em películas que consagraram o cinema documental paraibano, um professor de fotografia muito antes de se pensar na criação de um curso de Cinema. Fui seu aluno no antigo e lendário Departamento de Artes e Comunicação (DAC), nos anos 1980, e guardo boas lembranças, apesar da didática ‘austera’”.

Em nota divulgada, o Nudoc da UFPB registra grande consternação pela morte de Clemente. “Membro fundador e segundo coordenador deste núcleo, desde muito cedo um fotógrafo habilidoso e sensível. Suas imagens logo ganharam reconhecimento nacional, o que o levou a atuar também no cinema, como diretor de fotografia, em filmes como O País de São Saruê, Menino de Engenho, Fogo Morto, O Imigrante (rodado na França, em 1981), Salário da Morte e Nau Catarineta, além de outras realizações em cinema e vídeo. Nos anos 1980, Clemente passou a se dedicar também ao ensino, no Decom-UFPB, transmitindo seu conhecimento e experiências e contribuindo para a formação de gerações de fotógrafos e cineastas paraibanos até ser aposentado, aos 70 anos”.

A nota ainda comenta alguns feitos e premiações: “Dedicou-se a estudar a cultura paraibana e suas tradições, tendo publicado um livro sobre o Centro Histórico de João Pessoa e desenvolvido sua dissertação sobre a Epopeia do Sisal (dirigindo um filme homônimo). Na década de 1960, recebeu o Prêmio Coruja de Ouro (INC) e, em 2005, foi vencedor conjunto do Prêmio DocTV, com a obra Péricles Leal, o criador esquecido”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 05 de janeiro de 2024.