Guilherme Cabral
Ela já está na galeria dos grandes personagens paraibanos da História em Quadrinhos, ao lado de outras, a exemplo do super-herói Flama e da detetive Velta, criados por Deodato Borges (1934 - 2014) e Emir Ribeiro, respectivamente. Trata-se de Maria, nascida na cabeça e, também, por meio dos traços desenhados pelas mãos de Henrique Magalhães e que comemorou quatro décadas de existência no ano passado, uma longevidade que surpreende o próprio autor, conforme ele mesmo confessou para o jornal A União. A data festiva inspirou a produção de dois estudos acadêmicos, os livros intitulados Maria strip... arrepiando na saia (88 páginas, R$ 20), de Nadja Carvalho, e Eu sou Maria: humor e crítica nos quadrinhos paraibanos (124 pág., R$ 25), de Regina Behar, ambas professoras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que lançarão as obras pela editora Marca de Fantasia no evento denominado Tertúlia de Quadrinhos, o qual será realizado no dia 16 deste mês, na Gibiteca Henfil do Espaço Cultural José Lins do Rego, em João Pessoa.
“Não esperava que Maria chegasse aos 40 anos de idade”, confessou Henrique Magalhães, que é o editor da Marca de Fantasia e gerou a personagem no mês de julho de 1975, em João Pessoa. Ele credita a longevidade da hoje “senhora” da HQ ao fato de sua criatura ter amadurecido, de forma simultânea, junto com ele próprio, enquanto pessoa. “Maria surgiu no bojo da cultura alternativa, cultura de resistência a um contexto político de exceção. Sua fonte de inspiração foi a efervescência política e social do país, que lhe deu um caráter político semelhante à charge, no início de sua criação. As primeiras tiras da personagem traziam o grito contra o cerceamento político e intelectual, mas também a crítica às desigualdades sociais e aos costumes conservadores arraigados”, lembrou ele, acrescentando que, ao ingressar na UFPB como estudante, a experiência acadêmica também a tornou politicamente engajada.
No entanto, prosseguiu Henrique, com o fim da ditadura militar no Brasil, em 1985, Maria passou a ser mais poética e filosófica, ampliando a diversidade dos temas a serem discutidos. Mas ele não considera essa forma de pensar o mundo como sendo uma ruptura na trajetória da personagem, porque ela continua extremamente crítica. “Com a publicação diária nos jornais paraibanos, Maria pôde ser aprimorada no aspecto gráfico e na concepção do humor, passando dos fatos políticos imediatos ao humor intemporal, da contestação política explícita às contradições da política do quotidiano. Essa transformação no perfil da personagem foi também um reflexo das mudanças no país, com a abertura política e a redemocratização. Nesse novo ambiente, que teve seu ápice no início da década de 1980, novas questões políticas e sociais viriam à tona. Outras políticas se tornariam o enfoque favorito de Maria, como a luta das minorias por afirmação, a solidão nos centros urbanos, os preconceitos diversos. Maria tornou-se uma personagem em mutação, tendo como fio condutor a inquietação frente aos valores estabelecidos”, disse ele.
A propósito, na ocasião em que sua criatura completou três décadas de vida, em 2005, ele lançou, também pela editora Marca de Fantasia, a obra intitulada Maria: espirituosa há 30 anos. Na época, o quadrinista lembrou que a personagem fez sua primeira aparição nos jornais diários e suplementos da imprensa paraibana. Em A União, por exemplo, Maria foi publicada em 1979, 1980, 1983 e 1984. E, com a série Rendez-vous, saiu entre 2012 e 2014. Em seguida, ela ganhou sua própria revista independente e circulou nos fanzines, livros e álbuns. “Tanta longevidade é algo raro para os quadrinhos brasileiros, que sofrem com o descaso do mercado editorial”, comentou, então, Henrique, que, hoje, considera “fato excepcional, nas histórias em quadrinhos brasileiras, uma personagem ser contemplada com dois estudos acadêmicos, livros que analisam a trajetória e características de Maria”. Ele antecipou para A União que seu projeto, além da realização da Tertúlia de Quadrinhos - cuja programação ainda inclui a exposição de tiras da personagem, intitulada Maria - Quarentona, mas com tudo em cima, que será aberta às 16h30 deste dia 16 de abril e vai permanecer à visitação do público até final de maio - é lançar, em 2016, mais uma edição da revista Maria Magazine.
A propósito, o livro intitulado Eu sou Maria: humor e crítica nos quadrinhos paraibanos, de Regina Behar, observa os vínculos e interpretações da história política do Brasil por meio das tiras de Maria. “O que me fez escrever a obra foi a percepção do diálogo interessante, nos anos 1970 e 1980, época da ditadura militar, do casamento da historiografia com os quadrinhos como documento histórico”, justificou a autora paraibana para A União. “Maria é uma personagem forte, densa, e percebi que não havia nenhuma produção acadêmica sobre ela. Existem trabalhos sobre as personagens de Henfil e Angeli e que considero Maria no mesmo patamar e importância das criações daqueles dois artistas”, prosseguiu a professora universitária, cujo texto resulta do projeto de Pós-Doutorado que realizou na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob a supervisão do prof. Dr. Waldomiro Vergueiro.
Já Maria strip... arrepiando na saia, de Nadja Carvalho, é um ensaio sobre o caráter lírico da personagem e investiga o que há por baixo da saia de Maria. “A personagem é importante para a história dos quadrinhos da Paraíba porque abraça a causa das minorias sexuais, um tema atual, mas também porque completou 40 anos de vida”, disse a autora carioca, radicada em João Pessoa desde 1996, cuja ideia de escrever a obra acompanhou o seu estágio pós-doutoral, realizado na Universidade de Aveiro, Portugal, em 2014. Naquele País, ela foi lendo as tiras enviadas por Henrique Magalhães, que também a visitou duas vezes para, em conversas, subsidiar o projeto, pelas quais pode apreender as questões essenciais à personagem, que tem no amor a maior das subversões, considerando, ainda, seu erotismo e sua sexualidade homoafetiva. A escritora destacou que sua obra firma-se em três elementos de narrativa: personagem, espaço e ponto de vista, na qual procura examinar o que considera “alegorias ‘por baixo’ da saia abaloada de Maria”.