"As mulheres andaram muito tempo perdidas, esquecidas, caladas... Então, fazemos o que podemos para trazê-las à tona”. Não poderíamos começar a reportagem com a escritora, jurista e ex-ministra caboverdiana Vera Duarte Pina, que conversou com A União durante a primeira edição do Festival Literário Internacional da Paraíba (FliParaíba), sem destacar a fala dita por ela antes de ser dado o play no gravador. Defendendo, mesmo aposentada, os direitos das mulheres e das pessoas pretas, Vera está lançando, durante o evento, o seu novo livro – Blimundo, o Boi que Mexeu Com o Universo, conto infantil ilustrado. O evento termina hoje (veja a programação do dia no quadro).
"Chegamos ao século 20 com uma situação de uma mulher invisível que não tinha direito a nada. Graças a Deus, isso mudou"
- Vera Duarte Pina
Nascida em uma cidade da ilha de São Vicente, território de Cabo Verde, convive em ambiente plural desde os seus primeiros anos de vida: Vera é descendente de judeus, mas frequentou, na infância, uma escola dominical protestante. Foi por meio desta janela que as portas da literatura se abriram para ela – primeiro, pela poesia.
“Declamávamos poemas nas festas de Natal. Pouco a pouco, comecei a escrever, mas rasgava meus poemas porque, naquela época, as meninas não eram incentivadas a escrever”, rememorou.
A trajetória de sua família nas letras é ainda anterior: ela recorda, a partir de relatos de parentes, que, nos fins de tarde, seu avô juntava sua mãe e seus tios na frente de casa para ler autores clássicos da literatura lusófona.
“Até muito por conta da leitura de autores brasileiros, como Jorge Amado e José Lins do Rêgo, esse um autor que nós admiramos sobremaneira, e depois, com o ingresso na faculdade de Direito, eu comecei a gostar também da escrita”, declara.
Primeira magistrada
As revoluções sociais em Portugal e em Cabo Verde foram determinantes para que sua produção literária e sua atuação no Direito também se tornassem engajadas. Vera cita a Revolução dos Cravos, em Lisboa, no ano de 1974, e a independência de seu país natal, alguns meses depois, como dois desses acontecimentos marcantes.
“Cabo Verde foi povoada por europeus e africanos escravizados. É um país que desde a sua origem fez uma mistura de pessoas. Ainda há racismo, mas é diferente do Brasil, em que vemos sociedades negras, brancas e pardas que acabam se tornando excludentes”, detalha.
Estreia
A primeira publicação de Vera foi lançada em 1993, “Amanhã Madrugada”, que reúne poemas com temas diversos – dentre eles, a história do povo negro e a sua relação com a contemporaneidade
Amílcar Cabral, revolucionário guineense, foi outra figura determinante para a mudança de perspectiva das mulheres caboverdianas, no século 20. Segundo Vera, o líder era sensível à questão feminina e à necessidade de dar protagonismo às mulheres na luta contra a descolonização no continente africano.
“Chegamos ao século 20 com uma situação de uma mulher invisível que não tinha direito a nada. Graças a Deus, com Cabral, que tinha outra visão sobre as mulheres, isso mudou”, evocou.
O direito e o ativismo impulsionaram-lhe para a vida política: ocupou nos anos 2000, o cargo de ministra de Educação e Ensino Superior de seu país e passou por outras cadeiras importantes desde então, sendo eleita presidente da Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania e juíza-conselheira do Supremo Tribunal de Justiça. “As mulheres têm feito uma caminhada extraordinária por lá. Eu fui a primeira mulher magistrada em Cabo Verde e temos hoje um judiciário paritário”, comemora.
O boi encantado
A primeira publicação de Vera chegou a público em 1993: Amanhã Madrugada, que reúne poemas com temas diversos — dentre eles, a história do povo negro e a sua relação com a contemporaneidade, naquela época: “Tudo o que temos hoje / é duplamente valioso / Somos filhos dilectos / De um povo herói do quotidiano”, entoa a escritora, em um dos trechos da obra. Ainda que tenha privilegiado a prosa nas últimas produções, ela confidencia que não tem preferências. “Escrever é a minha paixão, independente do quê”, asseverou.
Com ilustrações do artista visual Samora Delcio, Blimundo, o Boi que Mexeu Com o Universo, conta a história do animal homônimo, que cativo, do canavial pertencente ao rei, decide se libertar do curral em que vive, frustrado pela exploração e por uma paixão não correspondida. Como nos contos infantis, o boi se transforma num lindo homem, ao receber um beijo de amor verdadeiro. “Nunca tinha escrito contos infantojuvenis. E ainda estou com dois ‘na galha’ para lançamento em breve”, resumiu Vera.
A autora destaca o tema explorado nesta primeira edição da FliParaíba (“Dez ideias para um futuro descolonizado”) e afirma que uma das estratégias que podem ajudar nesse processo é ampliar o consumo da literatura lusófona africana para além das academias e universidades.
“Por isso é que eu considero tão importante esse contato com o público. Ontem, quando eu sentei para ouvir a Orquestra Sinfônica da Paraíba, um senhor que se sentou ao meu lado me disse: ‘Gostei muito de A Palavra e os Dias. Fiquei tão surpresa por ter sido reconhecida! Aquilo aqueceu meu coração”, finalizou.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 30 de novembro de 2024.