Wlliam Costa
Não é tão comum assim, mas acontece de um dom artístico permanecer latente em um determinado indivíduo, vindo à tona, posteriormente, na fase adulta, por exemplo, por meio de um acaso ou toque divino – nunca se saberá ao certo. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o mecânico e professor de Educação Física paraibano, Márcio Pontes, 50 anos, hoje um dos mais promissores artistas plásticos com atuação em João Pessoa, na área da escultura metálica.
A história já está se tornando bem conhecida entre seus pares e as pessoas que acompanham sua recentemente iniciada trajetória artística. Na infância e adolescência, Márcio gostava de desenhar, inicialmente reproduzindo personagens de histórias em quadrinhos, até evoluir para a caricatura de amigos e familiares. Mas a paixão pela mecânica de automóveis e motocicletas sempre falou mais alto, relegando o artista ao segundo plano.
No entanto, havia alguns diferenciais que, mais tarde, iriam figurar entre as principais marcas registradas do artista. Além de um observador perspicaz da vida – pessoas, natureza, engenhos mecânicos, etc. -, Márcio sempre levou muito a sério tudo o que faz – é perfeccionista, mesmo -, então caprichava nos desenhos, sagrando-se vencedor dos inocentes torneios de criação artística que ele e alguns amigos formulavam e disputavam entre si.
Ocorre que os veículos automotores também são obras de arte. Cada peça é a concretização de um pensamento - muitas vezes fruto de séculos de pesquisas -, que se concatena com outros pensamentos, até formarem o conjunto harmônico que, obediente às leis da Física, possibilita o deslocamento seguro e controlado de uma estrutura pesada, em velocidades variáveis. E Márcio, ressalte-se, vive e trabalha, desde criança, em uma oficina de restauração dessas obras de arte.
Hora de juntar as peças. Exercitando-se no desenho, Márcio adquiriu noções de estética e transfiguração do real para o plano da arte. Na oficina mecânica, dissecando carros e motocicletas, desvelou os segredos relacionados às peças e engrenagens que os constituem. Já no curso de Educação Física conheceu a composição, estrutura e dinâmica do corpo humano. Faltava-lhe apenas o toque holístico que unisse todo esse conhecimento em um novo projeto de vida.
É aí que entra em cena o destino, acaso ou vontade divina, como queiram. Um amigo de Márcio lhe mostrou a foto de uma réplica de motocicleta, em metal, que comprara nos Estados Unidos. Márcio não gostou do trabalho e disse isso ao colega, prometendo fazer algo muito superior. Dito e feito. Ao reproduzir uma moto, utilizando sucata, Márcio não só obteve uma melhor resolução estética, como ativou o potencial artístico que estava incubado.
Então não parou mais de criar esculturas, inicialmente utilizando peças novas, sucateadas ou sobressalentes, depois comprando os acessórios que não tinha em casa. Dominar a técnica da solda (o fogo) também foi essencial. A inspiração é um mistério. O artista afirma que não faz escultura de modo premeditado. Não é assim que funciona. Somente quando algo lhe chama a atenção de uma maneira especial, é que ele corre para a oficina e dá forma e volume à ideia.
Três anos depois da primeira escultura – a réplica de motocicleta -, e já com uma coleção de elogios de artistas, críticos de arte e de muitas pessoas que tiveram a oportunidade de conhecer seu trabalho, notadamente nas duas edições do Salão de Artesanato da Paraíba das quais participou, em João Pessoa e Campina Grande, é que Márcio decidiu, enfim, realizar sua primeira exposição individual de esculturas de ferro e aço.
“Ferro & Fusão"
"A arte imitando a vida”, título da mostra, está aberta ao público no Centro Cultural São Francisco, no Centro Histórico de João Pessoa, até o dia 2 de setembro. A exposição reúne 13 esculturas em formatos grandes, médios e pequenos, a maioria representando animais (cabeças de boi e cavalo, além de aves, peixe e cachorro de corpo inteiro), à exceção de três calçados femininos, a “Vênus de Moçambique” e o “Centauro Cangaceiro”.
Em “Ferro & Fusão” chama atenção, em primeiro lugar, a fidelidade entre a obra de arte e o modelo. São peças hiper-realistas, do ponto de vista da anatomia, revelando a perícia com que o artista lida com a sucata, matéria multiforme e de peso variado. A escultura não é um amontoado aleatório de peças, mas um conjunto harmônico, onde cada porca, mola ou parafuso parece ter sido fabricado exatamente para exercer determinada função na obra.
Outro detalhe importante é o conceito de sustentabilidade que o projeto artístico de Márcio comporta. Materiais descartados irresponsavelmente pela população, com alto poder de contaminação do solo, como são os resíduos da indústria automobilística, adquirem outra função, pelas mãos do artista, retornando, para a população, em forma de sonho humano; de deleite estético, enfim, de tudo de positivo que a arte condensa.
A exposição inicia-se, de fato, no pátio interno da Igreja, onde o “Centauro Cangaceiro” – obra de maior dimensão da mostra - reúne em torno de si os visitantes do Centro Cultural. Uma ideia genial, de Márcio, que amalgamou duas mitologias que a história e a cultura uniram: Lampião, o Rei do Cangaço, do Nordeste do Brasil (que, embora histórico, tem também um perfil mitológico), e o Centauro, Mentor de Heróis, da Grécia Antiga.
A segunda peça em destaque é a “Vênus de Moçambique”, cujo título foi sugerido a Márcio pelo colega de ofício e “guru artístico”, Zello Visconti. Uma peça excepcional, sem dúvida. A escultura, em tamanho quase natural, é uma homenagem de Márcio a Dona Anita, que, juntamente com o marido, moçambicano como ela, acolheu Márcio como um filho, durante a árdua jornada empreendida pelo artista paraibano, em Portugal.
“Vênus de Moçambique” também é uma homenagem de Márcio às mulheres negras, especialmente às afro-brasileiras, como também às mães (a escultura simboliza uma mulher negra grávida), à natureza e à sabedoria universal. A escultura celebra ainda a África como berço da humanidade, segundo algumas teorias antropológicas e versões da história das civilizações, e a matriz africana, elemento fundante da própria cultura brasileira.
“Ferro & Fusão” mostra que a Paraíba tem um novo artista em processo de evolução, cujo talento promete muitas surpresas. A qualidade das esculturas em exposição é inquestionável. Caberá ao autor expandir seus conhecimentos técnicos e teóricos, de maneira a colocar seu talento a serviço da interpretação da sociedade contemporânea, gerando sentidos que auxiliem na criação de novas formas de viver, inspiradas na cultura da paz e da solidariedade.