Jamarrí Nogueira
Imagine viver quase duas décadas em ‘cativeiro’... Imagine viver sem ser quem você é... Pior que armário. Caixão. Imagine-se penitenciária de si mesmo. É possível que essas reflexões ajudem a entender melhor a temática trans. Diante da certeza de que não é fácil enfrentar as regras impostas pela sociedade, a partir da criação de conceitos binários bastante opressores e cruéis, artistas trans paraibanos deram um grito e assumiram o que são na essência.
“Quando eu era criança, já tinha certeza de que eu não era menina”, disse o cantor, compositor e dançarino Julian Sam, de Campina Grande. Tomar a decisão de que iniciaria um processo químico rumo ao transicionamento não foi fácil. Guinada foi durante o Réveillon de 2015. Julian conta que fez uma grande produção (roupa e maquiagem), mas não se sentia mulher.
Naquela virada de ano, ela decidiu exteriorizar o ‘ele’. Não à toa, tatuou no braço a data tão importante em sua vida: 1/1/2015. Os fãs assimilaram bem a ideia e Julian encontrou em si um novo artista. “A transição melhorou a minha desenvoltura na música. Gostei de ouvir o grave em minha voz”, contou ele.
Julian ainda tem seios e planeja fazer uma cirurgia para retirada. Assim, criou a campanha ‘Liberte o Julian’. Parte do dinheiro para a operação ele já conseguiu. A campanha ganhou mais popularidade e repercussão nacional após Julian protagonizar o clipe da música ‘Faca amolada’, de Val Donato.
O clipe - lançado no Dia da Visibilidade Trans – é o primeiro no país a ter um homem trans como protagonista. Ainda este ano, Julian pretende gravar seu primeiro EP. O repertório autoral reunirá canções de amor e também músicas de luta pela visibilidade trans. Um clipe também deverá ser produzido.
Bailando na curva
Ainda em Campina Grande, uma jovem bailarina tem outra percepção a respeito das bandeiras levantadas pelo cantor trans Julian Sam. Ela prefere, aliás, não ter bandeira alguma... O anonimato é a morada dessa artista transgênero, que prefere nem ser identificada. Aqui nesta matéria, vamos chamá-la de ‘Dirce’.
Pois bem: Dirce contou ter compreendido que não era menino aos 11 anos de idade. Desde então, deu início ao processo de entendimento de si mesma. O transicionamento, claro, veio bem mais tarde. Já na fase adulta.
Para se tornar uma mulher trans, Dirce garante que teve apoio dos amigos e também da família. “Tenho apoio de todos os lados”. Ainda assim, ela diz temer o olhar da sociedade, mantendo o anonimato e focando no seu aprimoramento na área artística.
“Prefiro anonimato porque, muitas vezes, quando pessoas descobrem que você é tal, elas passam apenas a te ver como o tal, e não como ser humano. As pessoas esquecem que você quer levar uma vida normal, e não apenas falar sobre o que ela é”, declarou Dirce.
“Morre o DJ Kylt”
Ele já foi a DJ Kylt, mas a transição – motivo de suprema alegria – fez nascer o DJ Ian Valentim. Referência na discotecagem paraibana, Ian afirma que o mais difícil foi ‘autoaceitação’. Ele conta que o processo de mudança foi rápido. Mudança rápida também internamente. Porque sempre tive certeza do meu gênero”, contou o DJ, falando sobre a ‘morte de Kylt’.
Ian falou que desde a infância via a si mesmo como menino. O nome de menina deu lugar a Kylt. Depois, tornou-se Ian Kylt. Por fim, a libertação o rebatizou: Ian Valentim. “Minha família aceitou muito bem. A minha mãe teve um choque com a minha decisão, mas já compreende. E a plateia dos meus shows tem reagido muito bem”.
Ele destaca que João Pessoa, onde mora, conta com um ponto de apoio para pessoas trans, que é referência nacional. O ambulatório funciona no hospital Clementino Fraga, em Jaguaribe. O transicionamento de Ian começou há sete meses, em setembro do ano passado. Já havia anunciado no facebook em julho que iniciaria a transição.
Trans nos palcos
No Brasil, a vocalista Mel Gonçalves ou Candy Mel, da Banda Uó, alcançou o estrelato no mundo das trans. Já a banda As Bahias e a Cozinha Mineira tem duas vocalistas transexuais. Impossível também não citar celebridades trans como Thammy Miranda, Lea T, Rogeria, Tereza Brant, Ariadna e Marcella Maia.
Outro destaque vem do cinema: a atriz Julia Katharine foi a primeira trans na história a ganhar um prêmio na Mostra de Cinema de Tiradentes, em Minas Gerais, este ano. Por seu desempenho no filme “Lembro Mais dos Corvos”, Julia levou o Prêmio Helena Ignez, concedido a mulheres de destaque no cinema.
“Uma mulher fantástica” foi o primeiro filme estrelado por uma trans a levar o Oscar, este ano. O filme chileno, que ganhou o prêmio de melhor longa estrangeiro, tem a atriz trans Daniela Vega. Do telão para a telinha, a atriz trans Jamie Clayton conquistou uma legião de fãs ao interpretar Nomi Marks em ‘Sense 8’. Criação da série é das irmãs trans Lilly e Lana Wachowski (as mesmas de ‘Matrix’).
Transfake
O Monart (Movimento Nacional de Artistas Trans) lançou o manifesto “Diga Não ao Transfake. Representatividade Já”, no qual artistas condenam que atores e atrizes cis interpretem personagens trans nas artes, seja no teatro, no cinema ou na televisão. A bandeira de luta tem apoio de artistas paraibanos.
O DJ Ian Valentim percebe a temática abordada em ‘A força do querer’ como muito importante para as pessoas trans. Na novela, a personagem interpretada pela atriz cis Carol Duarte passa por um processo de transicionamento. O Monart criticou o fato de não haver um artista trans no papel.
“Não teve representatividade, mas teve visibilidade”, avaliou o cantor e dançarino trans Julian Sam. Ele acrescentou que é muito importante que uma emissora com altos índices de audiência abra espaço para o debate em torno dessa temática, ajudando a população na compreensão do processo de transicionamento.