Pode-se dizer que A União teve uma contribuição indireta, mas seminal, para o Cinema Novo, movimento de vanguarda do audiovisual nacional nos anos 1960. Foi nas páginas do jornal que, o então jornalista e crítico de cinema pernambucano-paraibano, Linduarte Noronha publicou, em duas partes, a reportagem “As oleiras de Olho D’água da Serra do Talhado”, que inspirou o curta-metragem documental Aruanda (1960). O filme será exibido hoje em cópia restaurada, na mostra que carrega o seu nome: o Fest Aruanda. A sessão está marcada para às 16h, no Cinépolis do Manaíra Shopping, na capital. A entrada é franca (veja a programação de hoje no quadro).
Aruanda chega restaurado ao festival a partir de projeto conjunto do Centro Técnico Audiovisual do Rio de Janeiro (CTAv), atual detentor dos direitos autorais do filme e mantenedor da cópia utilizada, em parceria com o coletivo brasileiro Cinelimite — esse, graças a sua Iniciativa de Digitalização de Filmes Brasileiros (IDFB). Os especialistas Glênis Cardoso, Guilherme Garcia, e Pedro Vidal estiveram a cargo dessa iniciativa, sob a coordenação do pesquisador William Plotnick.
“Buscou-se preservar e remeter à condição original do filme, reproduzindo fielmente a textura material do 16mm utilizado em sua filmagem, bem como a iluminação característica do preto e branco”, detalhou Vidal.
A última restauração do curta datava dos anos 2010. Nessa nova empreitada, foram corrigidas a oscilação de contraste nos tons de preto e branco e parte da sujeira copiada fotograficamente no celulóide, que causa os famosos riscos ou pontos que se vê em cada quadro.
O produto final é uma cópia digital em alta resolução (padrão convencionalmente chamado de 4K) e que será exibida logo mais, no Cinépolis. “Essa não é uma restauração completa: precisaríamos, para isso, dos elementos originais do filme. Apesar disso, Pedro lidou bem com os desafios de contraste”, revelou William Plotnick.
A partir de seu processo de pesquisa sobre o cinema paraibano, William Plotnick revela sua admiração pelos realizadores do estado — a quem chama de “grandes descobertas”. “Este ano, conheci o crítico Jean-Claude Bernardet, que comentou, em algum momento, sobre o caráter ‘amador’ de Aruanda, mas com resultados incríveis. Embora ele não esteja errado ao dizer que essa foi a primeira experiência de muitos membros da equipe no cinema, acredito que a nova cópia em 4K revela um verdadeiro domínio da iluminação por Rucker Vieira e Linduarte Noronha”, declara.
A equipe da IDFB assevera o legado de Aruanda para a história do cinema brasileiro, evocando texto elogioso do cineasta baiano Glauber Rocha, quando de seu lançamento, e que o coloca como um das pedras fundamentais do Cinema Novo.
“É um dos primeiros filmes da nossa filmografia a expor, com crueza, as reais condições de trabalho das classes menos favorecidas, em busca de revelar a verdadeira face do Brasil no início dos anos 1960”, pontua Pedro Vidal.
- Entrada franca
- Hotel Aram (R. Nossa Sra. dos Navegantes, 431, Tambaú, João Pessoa)
- Cinépolis Manaíra (Manaíra Shopping, Av. Gov. Flávio Ribeiro Coutinho, 220, Lot. Oceania II, João Pessoa)
- Clique no link e acesse à programação do Fest Aruanda
Origem
Para realizar as reportagens publicadas em 25 e 27 de agosto de 1957, Linduarte Noronha viajou até o município de Santa Luzia, na Borborema, para retratar o cotidiano no quilombo do Talhado, com um olhar ampliado para além do registro dos ceramistas que utilizavam a olaria como meio de subsistência.
Os textos também traziam um panorama sociológico e político dos descendentes de povos escravizados. “O núcleo segregado [do Quilombo] não precisou da interferência constitucional para sobreviver. Na terra não há uma igreja, uma escola, um posto de polícia, um representante do poder público”, ele escreveu à época.
Esse mergulho no dia a dia dos quilombolas impactou Linduarte, que, dois anos depois, decidiu retornar a Santa Luzia para documentar novamente a região mas, dessa vez, munido de uma câmera e de alguns rolos de filme, cedidos pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Ele ainda trazia consigo uma equipe audiovisual que se tornaria célebre nos anos seguintes: Rucker Vieira, na direção de fotografia e montagem, e João Ramiro Mello e Vladimir Carvalho, creditados como assistentes de produção. O resultado desse registro foi o curta de 20 minutos.
O nome do filme remete ao plano espiritual cultuado pelas religiões de matriz africana. Por meio das lentes de Linduarte, o documentário, parcialmente ficcional, perfaz um registro ampliado dos textos escritos anos antes: os moradores do Talhado partem em busca de sua matéria-prima, a argila; e da madeira para cozer as peças, quando prontas.
Adultos e crianças trabalham na manufatura dos utensílios. Quando prontos, eles são levados por carros de bois até a feira local; no fim do dia, eles são filmados retornando para casa.
Funesto também em 4K
Logo depois da projeção de Aruanda, haverá a exibição de outro título paraibano em cópia restaurada: Funesto – Farsa Irreparável em Três Tempos (1999), um dos primeiros filmes do diretor e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Carlos Dowling. Esse média-metragem traz uma antologia de histórias ambientadas no interior do Brasil, alinhavadas por uma partida de cartas.
“Jane Malaquias, nossa diretora de fotografia, comentava que o filme funcionou como um curso de cinema para todas as pessoas presentes no set — algumas delas, pela primeira vez”, contou Dowling.
O Cinelimite esteve a cargo dessas e de outras restaurações de filmes paraibanos, como Closes, de Pedro Nunes, parte da chamada “onda de filmes queer em super-8”, movimento de estudantes do curso de Comunicação Social da UFPB. Outros projetos similares, com realizadores da Paraíba, estão no radar do coletivo.
“Queremos preservar as obras de Elisa Maria Cabral, artista pioneira do cinema experimental brasileiro. E planejamos estrear no Fest Aruanda, de 2025, restaurações de filmes dirigidos por Vânia Perazzo, documentarista inovadora que merece maior reconhecimento”, antecipa Plotnick.
PROGRAMAÇÃO/ HOJE
10h – Debate: Diretor Pedro Freire e atriz Carol Duarte, de Malu [Hotel Aram]
10h30 – Sessão Caleidoscópio Universitário: 10 curtas [Cinépolis Manaíra 9]
11h – Painel: Trajetória e legado do Cinema de Vladimir Carvalho, em 64 anos de história com a câmera apontada para o real, com os jornalistas Fernando Trevas e Sílvio Osias, o cineasta Walter Carvalho e a atriz Zezita Matos [Hotel Aram]
16h – Sessão Núcleo Memória e Preservação Audiovisual: Aruanda (1960), de Linduarte Noronha; e Funesto - Farsa Irreparável em Três Tempos (1999), de Carlos Dowling [Cinépolis Manaíra 9]
18h – Mostra competitiva nacional: A Última Valsa, de Fábio Rogério e Jean-Claude Bernardet (6 min, 14 anos); Umbilina e Sua Grande Rival, de Marlom Meirelles (15 min, 10 anos); Lispectorante, de Renata Pinheiro (1h33, 14 anos) [Cinépolis Manaíra 9]
20h30 – Mostra competitiva nacional: Eu Fui Assistente de Eduardo Coutinho, de Allan Ribeiro (17 min, livre); Jupiter, de Carlos Segundo (16 min, livre); A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha (1h49, livre) [Cinépolis Manaíra 9]
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 06 de dezembro de 2024.