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As águas profundas do luto

publicado: 11/11/2025 08h29, última modificação: 11/11/2025 08h29
O pernambucano Fábio Andrade autografa o romance “Coisas Distantes” na próxima sexta, na Livraria A União
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Foto: Divulgação/Cepe

por Eduardo Augusto (Especial para A União)*

Na apresentação de seu romance Coisas Distantes, Fábio Andrade fala sobre a metáfora do “disco voador” —algo distante e inexplicável — dialogando com o luto íntimo e avassalador do protagonista. O livro será lançado  em João Pessoa, na próxima sexta-feira (14), às 19h. O local é a Livraria A União, no Espaço Cultural, com entrada franca.

“Acho que o Coisas Distantes tem como ponto de partida duas coisas que nos tocam profundamente: a dor da perda e certas dimensões insólitas do real”, diz o autor. “Os elementos que se agitam sob o título do livro, as águas profundas dele, digamos assim, são múltiplas”. 

Fábio Andrade usou sua experiência com a Covid-19 no seu primeiro romance | Imagem: Divulgação/Cepe

Várias coisas distantes atravessam a vida do protagonista: corsários do século 18, supostas aparições de discos voadores, fantasmagorias produzidas pela imaginação ou pela estranheza do mundo. Somam-se a isso as experiências mais íntimas, como o desafio de viver depois de um trauma, que é a morte da companheira e namorada para a Covid-19. 

Uma ilha é o ambiente para abrigar a jornada de um homem em luta contra sua própria dor. “A ilha é uma imagem muito potente na história humana. É um espaço que pode simbolizar um tempo primordial ou definitivo — o paraíso, ou mesmo o fim dos tempos (as revelações do apocalipse são recebidas numa ilha)”. 

A ilha do livro é inspirada em Trindade, mas que é uma criação própria: “É a minha ilha, a minha Trindade, a Trindade dos meus personagens. E ela tem a força de uma personagem poderosa, magnética, carregada de histórias, particularidades e mistérios fascinantes. Ela me pareceu um lugar muito interessante para lançar alguém que se vê incapaz de viver ou criar novamente depois da perda”.

O autor relacionou o processo de mergulhar na psicologia complexa e dolorosa de uma mente em luto à sua própria relação com o tempo e a perda. “Como todo mundo, tive as minhas perdas também ao longo da vida. Quanto mais próximas elas são de nossas histórias pessoais, mais podem despertar o sentimento de um tempo perdido, que não pode ser retomado”, diz.

“De algum modo, o escritor e a literatura parecem querer refutar esse princípio da física clássica: o de que o tempo só corre numa direção”, prossegue. “Gosto de dizer que o escritor escreve, quixotescamente — eis outro viajante! —, contra o tempo”.

Sobre a construção do personagem, ele afirmou: “Embora eu mesmo não tenha passado por uma experiência exatamente como a dele, sei o que é perder uma parte de si. O restante é trabalho da imaginação”.

Sua experiência pessoal com a Covid-19 grave e a “covid longa” influenciou a revisão do romance. “O adoecimento pela Covid-19 ajudou a remodelar certos aspectos da trama, entre eles a morte de Eduarda. Toda literatura é, num certo sentido, biográfica. Usamos partes das nossas vidas, e mesmo dos amigos e parentes, para compor uma porção de nossos personagens. Imaginamos outras. Esse jogo constante entre o eu e o outro, o familiar e o estranho, é uma das tônicas da minha escrita”.

Ele ainda conectou o drama pessoal ao coletivo: “O drama pessoal provocado pela pandemia conecta o país inteiro. O trauma coletivo e as manifestações particulares dele, com todas as suas conotações pessoais e políticas também”.

A personagem Olívia é uma universitária que estuda o isolamento geográfico e serve de contraponto ao isolamento emocional do protagonista.

“Acho que Olívia espelha o protagonista de muitas formas. Ela assume muitos significados ao longo da narrativa, desde o alívio do luto [e, com uma piscadela ao leitor, chamaria atenção inclusive à relação anagramática do nome dela com esse alívio], até uma trilha possível, através do desejo e da palavra, para fora da melancolia que o domina e em direção à criação. É como se ela sintetizasse duas coisas importantes para a reviravolta: a possibilidade de desejo e a possibilidade de palavra novamente. Inclusive é por aí que o desejo entre eles surge: através da palavra. É por aí que a literatura se torna possível novamente, através do desejo e do desejo pela palavra”.

Para o autor, sua sensibilidade poética influencia na construção da prosa e da atmosfera do livro. “Para mim, o poético é parte integrante da ficção. Resulta desse trabalho com as palavras, insistindo com elas para que digam mais ou menos do que o leitor espera. Lição graciliana mesmo: não enfeitar, mas dizer”.

E, citando o crítico Peron Rios, acrescentou: “Num debate realizado sobre o Coisas Distantes, ele mencionou o que chama de linguagem mista: uma mistura de registro poético com o despojado. Acho uma boa definição. Ao mesmo tempo, essa capacidade de captar, como um sismógrafo, as sutilezas do mundo e da experiência compõem o olhar do protagonista, que é, por excelência, uma das características do poético”.

Para os leitores que enfrentam seu próprio luto, Fábio foi claro sobre o que seu romance pode oferecer. “Nunca uma saída. Os chamados livros de autoajuda oferecem saídas milagrosas e respostas. Creditam ao caminho trilhado por outros o poder de tirar você do luto. A literatura nunca faz isso, ela nunca te oferece respostas”, afirma. “Ela te apresenta como o personagem fez, e o que ele fez pode só servir para ele, embora você possa tatear o seu próprio caminho”.

E finalizou a ideia com uma citação do próprio protagonista: “Mesmo que te deem um mapa, te indiquem o caminho com o dedo, mesmo que gritem no teu ouvido por onde você deve seguir, só você e mais ninguém pode puxar o fio de Ariadne”.

Refletindo sobre trauma e perda no mundo atual, ele diz: “O trauma exige linguagem. Essa linguagem, por outro lado, é sempre insuficiente. É um esforço de linguagem. Transformado em linguagem, o trauma é uma possibilidade de partilha e comunicação”.

Para o escritor, a literatura é como um antídoto para a era digital. “Nesse sentido, a literatura pode representar, para o mundo hiperconectado, uma temporalidade outra, mais demorada, como exige a elaboração dessa linguagem insuficiente, mas necessária”, opina. “Aquele tempo para encarar e inventariar o que tentamos esquecer ou jogar para debaixo do tapete da história, pessoal e coletiva”.

Após a experiência intensa de escrever seu primeiro romance, Fábio Andrade adiantou que já está perto de finalizar o segundo. “O Coisas Distantes marca a chegada de uma nova versão de mim. A do ficcionista que já está às voltas com a finalização de um novo romance. Deve ficar pronto no primeiro semestre de 2026”, conta.

Embora tenha contos guardados, seus novos projetos apontam para a forma romanesca. “Algo na arquitetura do romance me atrai profundamente. Gosto de enredos construídos com alguma complexidade, e gosto da elaboração minuciosa de um clima a que o romance se presta muito bem”.

E finalizou com um alerta sobre sua própria escrita: “Mas sempre pensando no prazer que a literatura pode oferecer também ao leitor. Evito ao máximo a armadilha que Osman Lins, uma de minhas maiores referências literárias, detectou com precisão: a armadilha do escritor que, para brilhar tecnicamente, se torna chato”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 11 de novembro de 2025.