Teresa, papel de Denise Weinberg em O Último Azul, tem um desejo: ela quer voar. Ainda que forças contrárias impeçam o plano da personagem, a artista que lhe empresta corpo e voz, no mundo real, tem feito de tudo para matar essa vontade. “Eu estou voando ‘pra burro’ pelo Brasil. E vou voar para a China! Eu acho que ela adoraria!”, conta a atriz ao jornal A União, mencionando o sucesso do longa do pernambucano Gabriel Mascaro em mostras ao redor do mundo (como o Festival de Berlim, na Alemanha, onde venceu o Grande Prêmio do Júri). O filme estreia hoje nos cinemas brasileiros e recorre à fantasia para discutir um tema bem palpável do nosso cotidiano — o etarismo.
Na distopia criada por Gabriel, ambientada na Amazônia, todos os idosos são forçados, a partir de certa idade, a migrarem para uma colônia apartada do centro das cidades; lá, em tese, eles viverão seus últimos dias. Disposta a embarcar em uma última viagem antes do exílio, Teresa contará com a ajuda do aventureiro Cadu (Rodrigo Santoro). Diferente da ficção, Denise não tem encontrado empecilhos para seguir com seu ofício.
“Nunca trabalhei tanto na minha vida. Eu nunca fui uma mulher bonita, jovem. Minha linha sempre foi trabalho, trabalho, trabalho. Eu deixei a coisa caminhar pela natureza. A gente nasce, cresce, vive, envelhece e morre. Que nem fruta. Tem uma hora que você vai cair do galho”, sustenta.
O ingresso de Denise no cinema foi tardio — seu primeiro trabalho foi Guerra de Canudos, em 1997, quando já acumulava décadas de experiência no teatro. Ela mesma aponta que essa entrada posterior a impediu de cair nas armadilhas da fama, colhendo, agora, louros, como o prêmio de atuação no Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, em junho.
“Além desse reconhecimento, tem um investimento pessoal meu na Tereza, na feitura desse personagem, que me deu muito prazer, maturidade e uma compreensão muito maior sobre os idosos. A Amazônia e a natureza são muito poderosas. E, se você reverencia a natureza de uma forma bacana, ela vai te devolver com o dobro do que poderia ser”, assinala.
Coincidência no azul
Tibério Azul, músico recifense, estreia nos cinemas assinando o roteiro desse longa ao lado de Gabriel Mascaro. O sobrenome do músico e o título no filme (sugestão de Tibério) coincidem graças à decisão dos produtores em evidenciar esse “azul” a partir da ideia de céu, que permeia a trama. Mas todo o restante do texto foi pensando em conjunto pela dupla.
“A maioria dos elementos, inclusive os fantásticos, surgiram desse nosso encontro. Gabriel é mais concreto, eu sou mais simbólico, mas a graça era justamente essa mistura. Optamos por ficar no limiar entre a realidade e o fantástico. Os elementos surgem com amparo narrativo dentro da realidade, o que dá uma beleza extra”, afirma.
Amigos desde a faculdade (de Comunicação Social), Gabriel e Tibério seguiram por caminhos diferentes, a princípio, mas sem deixar a parceria; o primeiro dirigiu o videoclipe de estreia do segundo — “Veja só”, em 2021. Ao longo desse tempo, acompanharam também a efervescência do cinema pernambucano no século 21, ciclo do qual Mascaro faz parte.
“Na universidade, o lançamento de Amarelo Manga, de Cláudio Assis, mexeu com a cabeça de todos nós. Sou apaixonado por histórias, fissurado na beleza da narrativa — seja música, livro ou filme. O próprio Gabriel Mascaro também me influenciou bastante. Além dele, Hilton Lacerda, Kleber Mendonça Filho: eles sempre me tiraram do conforto “, destaca.
O roteirista tem acompanhado, de longe ou de perto, outros processos de O Último Azul. Dois deles: a construção da trilha sonora de Memo Guerra e as sessões especiais do filme, como aquela promovida no Palácio da Alvorada, em Brasília, no mês passado, com o presidente Lula. Tibério Azul pretende continuar sua carreira no cinema paralelamente à da música.
“É algo que faço com prazer e sem esforço, como uma criança brincando. Estamos tentando levantar um novo projeto e também recebi alguns convites. Mas, agora, tudo está meio em aberto, e quero aproveitar para curtir o momento de lançamento dessa obra que me orgulho demais de ter escrito. Meu desejo é conciliar a música, os shows e a escrita”, planeja.
A Amazônia e o desejo
Além de Denise, quase septuagenária, Gabriel Mascaro escalou Rodrigo Santoro, em um momento emblemático da vida do ator, que completou 50 anos no último dia 22. Ao jornal A União, o realizador justifica o convite de ambos. Em relação à primeira, ele pôde contar com a bagagem teatral da artista, elemento importante na química com os colegas em cena.
“Sempre tive uma admiração muito grande pelo Rodrigo Santoro. Eu consegui ver a pré-estreia de Bicho de Sete Cabeças, há 20 anos atrás, num festival em Recife, em Pernambuco. Eu nem sonhava em fazer cinema. A gente ficou ensaiando a possibilidade de trabalhar junto. Foi muito bonito ver como ele mergulha no filme. É um ator muito estudioso”, informa.
O diretor recorda que, recém--formado, trabalhou durante algum tempo na região Norte, dando oficinas de realização audiovisual para povos originários locais, no projeto Vida nas Aldeias. Essa vivência de Gabriel na Amazônia auxiliou o artista na condução de O Último Azul, mas a imersão vai além da criação do tempo e do espaço na ficção.
“A gente idealiza muito a Amazônia, a fauna, a flora. E eu começo o filme de maneira intrigante, com um frigorífico de jacarés, pendurados numa linha de produção. Tentamos criar um lugar complexo, quase como um personagem e com um arco à parte, como esse estado desenvolvimentista, que, em nome da produção, isola os corpos dos idosos”, alega.
Celebrando a estreia de seu quarto longa ficcional, Mascaro resume seu projeto como uma investigação sobre os indivíduos idosos, mas em uma perspectiva diferente de filmes de proposta similar. Sua intenção foi superar a ideia de que obras nessa seara tinham de focar no passado e na nostalgia de tempos áureos.
“Outros são centrados na finitude, na despedida da vida. Eu queria fazer um filme sobre o presente. Sobre pulsão, sobre desejo. Sobre essa mulher idosa que vai mostrar para a gente que nunca é tarde para ressignificar a vida. Então, é nesse lugar que eu tento fazer uma pesquisa sobre esse corpo idoso feminino. Mas no lugar desse corpo desejante”, conclui.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 28 de agosto de 2025.