“Do canto mais profundo,/barro, modelagem, harmonia;/Como uma fresta na noite,/ nasce a escultura”. Era assim que a poeta paraibana Margarida Lucena da Hora definia no texto “Escultura — Interpretação” o trabalho de seu marido, o artista pernambucano Abelardo da Hora. Falecido há uma década, se vivo, ele completaria hoje 100 anos. A Paraíba lhe deu o amor de sua vida, com quem se casou em 1948 e, após seu falecimento, um local para que boa parte do seu acervo fosse abrigada. Inaugurado em 2022, o Memorial Abelardo da Hora (MAH) funciona de terça a domingo, no Espaço Cultural, em João Pessoa, e exibe para os visitantes cerca de 250 obras, coletadas em acordo com a família do artista. O MAH celebra o centenário de Abelardo com uma programação especial até o próximo sábado.
As negociações para a transferência do acervo de Recife para a capital paraibana começaram em 2018. O Governo do Estado investiu mais de R$ 1 milhão na logística de transporte e na construção do espaço. As obras que compõem o memorial vão além das conhecidas esculturas, que estão expostas em outros museus e espaços públicos do Brasil e do mundo: são também gravuras, pinturas, peças de cerâmica e tapetes, divididos em cinco sessões temáticas — “Abelardo protesta”, “Abelardo retrata”, “Abelardo vive”, Abelardo ama” e “Abelardo cria”.
Maria Botelho, diretora do MAH, explica que o artista é um dos expoentes da escultura expressionista no país. Segundo ela, a força das expressões nos indivíduos retratados por Abelardo é justamente o ponto que mais chama a atenção dos visitantes que vislumbram suas obras em concreto ou outros suportes pela primeira vez. “Na sessão ‘Abelardo protesta’, a gente tem denúncias sociais, a exemplo da série ‘Família brasileira’: nela temos mães com seus filhos, retratados sem o pai. Já em ‘Meninos do Recife’, produzida em 1962, temos o retrato, em gravuras, de crianças em situação de vulnerabilidade”, esclareceu.
Salvo por Margarida
A verve política foi mais explorada em sua participação junto ao Movimento de Cultura Popular (MPC), do qual também fizeram parte Paulo Freire e Ariano Suassuna. Por conta disso, se tornou alvo da Ditadura: foi preso mais de 70 vezes e teve obras destruídas pelos militares — a exemplo da “Torre cinética”, erguida em uma praça de Recife e posta abaixo tempos depois. O regime militar chegou a determinar o seu “expurgo”, como revelou trecho de documento divulgado pela revista Continente em 2011. Foi salvo por influência de Margarida, sua esposa. “O parentesco dela com o então vice-prefeito de Recife, Augusto Lucena, o livrou da morte nos anos 1960”, conta Maria.
Na década de 1970, após passar temporada em São Paulo, voltou ao Recife a fim de desenvolver sua série mais famosa: as esculturas sinuosas de mulheres. “Nos shoppings centers pernambucanos havia várias delas. Trilhando por este caminho ele conseguiu voltar ao mercado das artes”, explica a diretora.
A sessão “Abelardo cria” detalha os processos que ajudavam o artista a produzir os trabalhos em concreto. “Ele começava do estudo, com maquetes de gesso em escala menor. Depois, partia para a argila, moldando a obra numa forma de gesso. Essa argila crua era descartada e a forma seca recebia o concreto. Por fim, a escultura poderia receber um acabamento em metal, que era dado por fundição”, detalhou a diretora.
Para Maria, além do legado material, o seu engajamento político e sua atuação como professor de artes deixaram heranças perenes e imateriais para a arte brasileira. “Ele formou muitos artistas, tanto de sua própria geração, como de gerações seguintes, a exemplo de Francisco Brennand. A obra dele é essencial para entendermos a arte moderna como um todo, fugindo do eixo Rio-São Paulo”, asseverou
Militando pela arte
Hoje professor do Departamento de Artes Visuais da UFPB, Daniel da Hora, neto de Abelardo, conviveu de perto com o trabalho do avô desde criança. “Estudava no centro de Recife e quando largava da escola ia direto para o ateliê, vê-lo trabalhar”, relembra Daniel. Com o tempo, ele passou a compreender também a importância de Abelardo, decidindo, em seguida, seguir carreira como artista visual, assim como seu tio, Iuri da Hora. Hoje, o professor também acumula a coordenação de curadoria e expografia do MAH.
A relação do pernambucano com a Paraíba também se deu através da inclusão de suas obras na paisagem urbana de João Pessoa desde os anos 1950. Daniel elenca o painel que cobre a fachada da Casa da Universitária Paraibana (UFPB), na capital, como uma das primeiras intervenções dele no município. “Há peças na Estação Cabo Branco, em coleções particulares e em vários prédios da cidade. Ele inclusive, militou junto à Câmara de João Pessoa pela promulgação da lei que determina a obrigatoriedade de inclusão de obras de arte em edificações da capital”, descreve.
Daniel integra, hoje, um debate com outros cinco artistas sobre a trajetória de Abelardo, promovido pela Funesc. Será na sede do memorial, a partir das 15h, com entrada franca. Participam do encontro Sicília Calado, Paulo Bruscky, José Brito, Moacir dos Anjos e Átila Tolentino. Entre amanhã e sábado, a Funesc também oferta cinco sessões de oficinas de arte: na quinta, de gravura em carimbo; na sexta e no sábado, de pose rápida com modelo vivo.
PROGRAMAÇÃO HOJE A SÁBADO
- HOJE
15h – Debate com Daniel da Hora, Sicília Calado, Paulo Bruscky, José Brito, Moacir dos Anjos e Átila Tolentino
- AMANHÃ
10h às 11h – Oficina de gravura/ carimbo
15h às 16h – Oficina de gravura/ carimbo
- SEXTA
10h às 11h – Oficina de pose rápida/ modelo vivo
15h às 16h – Oficina de pose rápida/ modelo vivo
- SÁBADO
16h às 17h – Oficina de pose rápida/ modelo vivo
- Entrada franca
- No Memorial Abelardo da Hora (Espaço Cultural, R. Abdias Gomes de Almeida, 800, Tambauzinho, João Pessoa)
- Através do link, acesse a audiodescrição das obras do memorial
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 31 de julho de 2024.