Em fevereiro de 2012, a matéria de capa do suplemento Correio das Artes destacava um jovem poeta, jornalista e historiador paraibano (contando à época 26 anos), que, de tanto frequentar as bibliotecas públicas de Campina Grande, era por vezes confundido pelos visitantes com um funcionário daqueles equipamentos. Essa relação orgânica e afetiva desenvolvida por Bruno Gaudêncio em relação aos livros e aos lugares em que eles “habitam” serviu de metatexto para a escritura de A Pele da Minha Casa (Editora Papel da Palavra), obra que lança amanhã, às 19h, no Museu de Arte e Ciência (MAC), no bairro Catolé, em Campina Grande. Na capital, o livro deverá ter sessão de autógrafos em novembro.
O título inaugura nova vertente na obra do escritor, poeta e pesquisador, que até então se destacava por livros de poesia e ensaios acadêmicos, além da prosa ficcional, como em Contos da Noite: Breve Inventário de Lendas Paraibanas (Editora Meroveu), publicado no ano passado. A Pele da Minha Casa reúne 40 crônicas escritas durante um período de férias, em imersão física e simbólica — o invólucro da pele-biblioteca de seu apartamento.
- Textos oscilam entre realismo e invenção e entre ensaio e devaneio | Imagens: Divulgação/Papel da Palavra
“Eu nunca me dediquei, propriamente dito, às crônicas”, diz Gaudêncio. “Mas sempre me inquietou um pouco a minha relação com as bibliotecas, sejam públicas ou privadas. Nesse sentido, eu me vi escrevendo sobre essa minha relação com os livros, com a biblioteca, e fui percebendo que poderia, através das leituras que estava fazendo, elaborar um livro em que eu pudesse relatar a minha experiência com esses objetos e esse espaço ao mesmo tempo caseiro, íntimo, que é a biblioteca”.
O projeto nasceu de um edital da Lei Aldir Blanc, que selecionou uma amostra inicial de textos e impulsionou a escrita das demais crônicas. Em poucos meses, o autor concluiu o livro, que, além do apoio público, ganhou edição caprichada da editora Papel da Palavra, com ilustrações de Samara Romão.
Mais conhecido por sua produção poética — são seis livros publicados, a exemplo de O Ofício de Engordar as Sombras (Editora Sal da Terra, 2009), Acaso Caos (Editora Ideia, 2013) e O Silêncio Branco (Editora Patuá, 2015) —, Gaudêncio encara A Pele da Minha Casa como uma ruptura estilística.
“Cada livro obriga você a caminhar para alguns autores ou escolher um determinado gênero. Eu poderia ter feito esse livro através da poesia ou em textos acadêmicos, mas fiz a escolha pela crônica justamente por entender que é um gênero muito aberto, que tem muitas possibilidades”, afirma.
Livros sobre livros
As crônicas orbitam uma obsessão afetuosa: os livros e o ato de colecioná-los. Entre memórias, reflexões e pequenos episódios, o autor constrói uma espécie de autobiografia por meio dos objetos que o cercam; obra que, como afirma, proporcionou-lhe mais prazer em escrever até hoje, tendo em vista a leveza escritural da crônica.
Do lugar de conforto da experiência doméstica, o autor dialoga com uma tradição de escritores que também transformaram bibliotecas em tema literário. Entre as influências que perpassam as páginas, Gaudêncio cita o estudioso da história da leitura, Jorge Carrión, o bibliófilo José Mindlin (1914–2010), Umberto Eco (1932–2016), a espanhola Irene Vallejo, o escritor e crítico literário paraibano Hildeberto Barbosa Filho (que assina a contracapa da obra) e o ensaísta e crítico literário alemão Walter Benjamin (1892–1940).
“É um livro de diálogos com o que chamamos de livros sobre livros. Li muito esses textos e de certa maneira fiquei até contaminado por eles. É uma parte do livro em que eu faço uma reflexão sobre essas bibliotecas que não são minhas, mas que acabaram se tornando, pelo fato desses autores escreverem um livro sobre essa experiência”, aponta.
Diálogo com a palavra
Apesar do tom afetivo, A Pele da Minha Casa não se limita à celebração da leitura. Em vários textos, Gaudêncio insere reflexões sociais e políticas sobre o acesso desigual aos livros e à educação. Em uma das crônicas (“Retrato de um escritório escrito no fio das palavras”) promove diálogo entre a sua vivência de colecionador com o ímpeto orgânico de Carolina Maria de Jesus (1914–1977) diante do texto — a autora de Quarto de Despejo (1960) escrevia em condições precárias e sem privilégios de estudo formal. “Há uma dimensão evidentemente social e política nesse livro, embora seja mais afetivo e memorialístico”, aduz.
Em momento de experimentação estilística, o autor faz uso da permissividade lúdica da crônica para oscilar o pêndulo entre realismo e invenção, ensaio e devaneio. Em uma das crônicas, brinca com o fato mórbido, e simbólico, de que alguns livros foram encadernados com pele humana — a provocação que se faz carne no verbo do título.
“Há livros que sussurram ”, comenta. “A crônica tem muito disso. Você não vai encontrar apenas relatos memorialísticos mais realistas, mas também um diálogo com a palavra”.
Propositalmente misturados ao longo da obra, crônicas e ensaios figuram lado a lado como gêneros escolhidos justo por sua dinâmica argumentativa libertária, avessos às amarras formais. “Queria que o leitor também ficasse nessa dúvida: o que é exatamente um ensaio, o que é uma crônica?”, confirma.
Gaudêncio confessa ser um colecionador atípico. Ao contrário de bibliófilos em busca de raridades, à guisa dos já citados Mindlin e Eco, prefere os livros “corridos”, funcionais, os que podem ser manuseados, sublinhados, anotados à margem. Advoga, outrossim, que a obra literária precisa ser lida e diz que, quando a obra é rara demais, chega a sentir-se constrangido em macular as peles mais sensíveis e vulneráveis ao desgaste do tempo.
“Hoje você tem cada vez menos pessoas que estão dispostas a colecionar livros, porque eles ocupam um espaço muito grande na casa, na vida das pessoas. E vivemos uma era muito minimalista — apartamentos cada vez menores, as pessoas transitam mais entre os estados, as nações, e aí o livro acaba se tornando um incômodo muito grande, já que há um deslocamento maior. Tudo isso faz com que haja uma diminuição na coleção”.
Mesmo sendo obra voltada a um público específico — leitores que compartilham o prazer de conviver com as estantes —, A Pele da Minha Casa vem recebendo retornos entusiasmados. Professores e pesquisadores da USP, como Lincoln Secco e Marisa Midori, elogiaram a obra e chegaram a comentá-la em programa da Rádio USP, o que ampliou o alcance do título para leitores de outros estados.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 08 de Outubro de 2025.