A comédia Como Salvar um Casamento representou uma das (muitas) transformações que a artista mineira Nany People viveu tanto no âmbito pessoal quanto em sua carreira: esse espetáculo estreou sua primeira versão em 2007, ano em que a atriz, comediante e cantora deixava as boates brasileiras e iniciava uma nova trajetória de sucesso nos palcos do nosso país. Com texto atualizado, a peça chega à Paraíba em duas apresentações neste fim de semana: hoje, em João Pessoa, no Teatro Paulo Pontes do Espaço Cultural, a partir das 20h, com ingressos disponíveis na página do Outgo; e amanhã, em Campina Grande, no Teatro Municipal Severino Cabral, também às 20h, com entradas à venda no site do Sympla.
Nany People iniciou a divertida entrevista concedida ao Jornal A União fazendo graça com o nome do repórter. Foi o gancho para que ela mesma revelasse o seu nome de batismo, Jorge Demétrio, uma homenagem ao avô. Depois de um processo que durou 18 anos, ela finalmente conseguiu fazer constar, em sua certidão de nascimento e nos demais documentos pessoais, o apelido que adotou quando começou a trabalhar nas casas de show e em boates de São Paulo, inspirado pela atriz e modelo Nani Venâncio, também mineira: apenas em 2018, ela pôde adequar seus registros à sua realidade como mulher trans.
Nasceu mulher
A descoberta de uma identidade de gênero dissonante das pessoas ao seu redor se deu muito próxima dos seus primeiros contatos com a arte. “Eu nasci sendo mulher, mas sabendo também que eu não era compatível com o comportamento esperado de um menino do sexo masculino. Fui crescendo com esse jeito e com essa voz, não fazia questão de disfarçar, o que foi motivo de choque na época”, rememora. A família de Nany conta que sua veia artística também deu as caras muito cedo. “Tinha um comercial do Leite de Colônia que ouvia no rádio e cantava o refrão junto. Isso com um ano e meio”, revela.
Ela compara Serrania, seu município natal no interior de Minas Gerais, com Santana do Agreste, mítica cidade da personagem Tieta, de Jorge Amado, definindo seus conterrâneos à época como católicos e tradicionais. Aos poucos, eles foram compreendendo seu jeito de ser, mas novos desafios chegaram com a mudança para Poços de Caldas, local onde enfrentou sérios episódios de .
Sua mãe foi agente importante na modificação de sua realidade, investindo na cultura e na formação da então menina. “Ela leu o meu biótipo, me blindou, me educou e me encorajou a enfrentar tudo isso da melhor maneira possível. Uma família que te dê suporte é algo que a maioria das pessoas não tem”, pontua.
Bicicleta no Chacrinha
Depois do rádio, seu próximo encantamento seria o circo — um vislumbre dos palcos. “Meu primeiro teatro acabou sendo o galinheiro de casa; eu encenava para as aves”, rememora. Do quintal de casa, ela partiu para os cursos de teatro. O dom para a música também aflorou: cantou em concursos de calouros locais e na caravana do Chacrinha — série de shows que o famoso apresentador promovia Brasil afora. “Ganhei uma bicicleta e uma televisão. Eu virei a criança prodígio da cidade e fui estudar no conservatório de música. Desde então, não saí mais. É fácil entrar no meio das artes, o difícil é permanecer”, pondera.
Transferiu-se adulta para São Paulo, com o objetivo de aprimorar seus conhecimentos no teatro. Descobriu as drag queens (então “transformistas”), arte pela qual se tornou famosa nas boates e nos teatros paulistas e que lhe trouxe para a TV, como repórter, pelas mãos do apresentador Goulart de Andrade; anos mais tarde, ela chegaria ao programa de Hebe, no SBT. Mas até aquele momento, Nany se via como um homem homossexual. “A gente não sabia o que era uma trans; para a gente, existiam as travestis e as ‘bichas pintosas’. Fui fazer um acompanhamento no Hospital das Clínicas de São Paulo que confirmou essa identidade, mas não cheguei a fazer a cirurgia de redesignação de sexo, a pedido da minha mãe”, recordou.
Sem pronomes neutros
Apesar de não levar à risca os preceitos tradicionais de sua família e de não utilizar mais o seu nome de batismo, ela credita ao “Jorge” as práticas “caretas” que a salvaram de muitas situações de perigo trabalhando nas noites de São Paulo. Alegando não consumir álcool ou drogas, ela diz que seu comportamento low profile surpreende quem a conhece pessoalmente. “As pessoas chegam aqui em casa achando que vão encontrar correntes, chicotes e um balanço erótico. Elas se deparam com um oratório e uma imagem de Nossa Senhora. Uma vez um ‘peguete’ até me chamou de ‘clássica’”, declara.
O orgulho que sente hoje ao poder referir-se a si mesma com pronomes femininos é uma das razões que leva Nany a discordar do uso dos pronomes neutros, pauta defendida por parte do movimento LGBTQIAPN+ como forma de adequar nossa linguagem a indivíduos que não se identificam com os sexos feminino ou masculino. “Quando você tem opiniões muito pessoais e muito formadas e não endossa o coro da ‘ordem do dia’, você sempre é mal-interpretada e julgada. É tida como um desserviço para a comunidade. Eu não me dobro à cobrança polarizada da internet. As pessoas estão vulneráveis aos achismos”, julga.
Além do trabalho no teatro, ela tem lotado sua agenda atual com participações em séries e telenovelas, a exemplo de Vicky e a Musa (Globoplay) e Ponto Final (Netflix). A atriz ainda estreou três longas apenas neste ano: Vidente por Acidente, De Repente, Miss e Mallandro, o Errado que Deu Certo. Fazendo um balanço da carreira e da importância da sua representatividade, Nany diz que essa visibilidade simbolizou um ato de sobrevivência para si mesma. “Mas não me arrisco a dizer o que eu represento para a classe. Citando Leonardo Boff, cada um vai te ler com os olhos que tem e com os pés na realidade em que pisa”, avalia.
Ninguém acreditava na peça
A peça que Nany traz à Paraíba estreou, em 2007, como Nany People Salvou Meu Casamento. Com texto de Bruno Motta e de Daniel Alves e direção do próprio Bruno, a atriz encenava, ao lado do ator Pierre Bittencourt, uma série de esquetes que tratavam de relacionamentos entre homem e mulher, inspirados por divórcios de pessoas conhecidas dela. “O público demorou a comprar a ideia porque achavam que eu sairia de um Kinder Ovo dublando ‘I will survive’ (música de Gloria Gaynor). Ninguém acreditava que era uma peça séria, em que eu interpretava sete perfis diferentes”, informa.
Nany, Bruno e Daniel adaptaram o texto para a contemporaneidade, mesclando a visão da mulher em torno dos relacionamentos, como acontecia na outra peça, com impressões diversas de indivíduos e suas relações, ampliando o leque de relacionamentos para composições poliamorosas. “Um dos comentários que faço: banheiros separados, casamento prolongado. Ver a pessoa que você ama numa posição escatológica não é confortável. Aí eu abro para plateia fazer um ‘testemunho coletivo’, do que incomoda os casais. Basta um falar que todos falam”, expõe.
E, afinal de contas, como salvar um casamento? Nany diz que, se existe fórmula mágica, ela repousa no resgate das identidades de cada pessoa que está imersa naquele arranjo afetivo, sexual ou amoroso. “Uma frase minha na peça resume tudo isso: receitas existem várias. Mas, para cada um, o bolo cresce de um jeito. Muda o jeito de bater, ou a temperatura do forno. Mas o ingrediente principal é respeitar o outro em sua essência. Nenhum casal ou ‘trisal’ nasce siamês”, finaliza.
COMO SALVAR SEU CASAMENTO
- Texto: Bruno Motta e Daniel Alves. Direção: Bruno Motta. Com Nany People.
- Elenco: Nany People.
Hoje, às 20h. - No Teatro Paulo Pontes (R. Abdias Gomes de Almeida, 800, Tambauzinho, João Pessoa)
- Ingressos: R$ 80 (inteira), R$ 60 + 2 kg de alimento não perecível (social) e R$ 40 (meia), antecipados na plataforma Outgo.
Sábado, às 20h. - No Teatro Severino Cabral (Av. Mal. Floriano Peixoto, s/nº, Centro, Campina Grande)
- Ingressos: R$ 100 (inteira) e R$ 50 (meia), antecipados na plataforma Sympla.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 04 de outubro de 2024.