por Joel Cavalcanti*
“Existirmos: a que será que se destina?”, questiona Caetano Veloso, que há 80 anos se destina a não deixar que esculachem com a nossa história. Hoje se celebram oito décadas de vida do gênio da MPB, que, de Santo Amaro da Purificação, revolucionou a música e o espírito brasileiro. Artista que jamais saiu da vanguarda da arte, Caetano eterniza tudo que a sua voz inconfundível toca, desde uma esquina em São Paulo até o Vale do Silício, quem caminha contra o vento, vaga sozinho por Londres ou alguém que fosse à Paraíba. Ele fez da língua portuguesa a nossa pátria para falar de ridículos tiranos e para reivindicar o simples direito de dançar e deixar tudo odara. Criou a Tropicália para inundar as almas dos caretas e revelar as contradições do país trágico e utópico que vive na bruta flor do querer. Desde que Caetano é Caetano é assim.
Os paraibanos aguardam com ansiedade a oportunidade de festejar a vida e o trabalho do artista em João Pessoa, onde ele se apresenta no dia 23 de outubro, no Teatro A Pedra do Reino, trazendo a turnê de Meu Coco, nome do primeiro álbum de inéditas em 12 anos. Enquanto o dia não chega, o público acompanha hoje a apresentação ao vivo que Caetano realiza ao lado da irmã Maria Bethânia e dos filhos Tom, Moreno e Zeca Veloso no especial que será transmitido a partir das 20h30 no Globoplay, que estará aberto para não assinantes. Tudo para reafirmar que sem Caetano não dá.
E faz muito tempo-tempo-tempo que Caetano causa impacto na vida das pessoas. Para o professor, poeta e crítico literário Amador Ribeiro Neto, o primeiro choque aconteceu com a figura de Caetano Veloso no programa de televisão Divino Maravilhoso, em 1968. Foram os figurinos futuristas, os movimentos corporais histriônicos e as guitarras dos Mutantes que fascinaram o então jovem de 15 anos. “Foi um marco revolucionário pelas imagens transgressivas do programa e as músicas da tropicália foram uma ruptura para mim”, lembra Amador sobre o programa que fazia um contraponto ao Iê-Iê-Iê das Jovens Tardes, seguimento apresentado por Roberto, Erasmo e Wanderléa.
A experiência norteou o repertório crítico do paulista radicado em João Pessoa a ponto de ele deslocar o interesse visual inicial para criação lítero-musical de Caetano Veloso, tema com o qual ele desenvolveu uma dissertação e uma tese de doutorado na USP. “A poesia de Caetano sempre foi de vanguarda, embora ele dialogue também com a tradição. Não é à toa que ele tenha escolhido dialogar mais com os poetas concretos, com a poesia mais inovadora que o Brasil produz até hoje”, destaca ele. A paixão pelo concretismo em Caetano está desde a composição de ‘Clara’, presente em Domingo, primeiro disco do baiano em parceria com Gal Costa, até as produções mais recentes. “Mesmo no disco Meu Coco, ele ainda faz questão de trazer poemas concretos que ele musicou na década de 1970 e 1980, como se ele pagasse um tributo aos 90 anos de Augusto de Campos”.Amador Ribeiro Neto já teve o privilégio de conversar sobre poesia com Caetano e sobre a influência de Augusto de Campos na sua música. Papo de quem sabe mais, muito mais. Já o ofício de jornalista cultural de Kubitschek Pinheiro o levou, pelas mãos do amigo e jornalista Sílvio Osias, às conversas sobre música com o filho de Dona Canô. “Caetano é a própria encarnação de si mesmo. Desde quando morava no Sertão, eu sonhava em chegar perto dele”, conta Pinheiro, que se prepara para assistir no Rio de Janeiro o show da turnê de Meu Coco. Será o terceiro deste mesmo repertório. “Caetano não é aquele artista que a gente coloca um pôster na parede. Esse é o Roberto. Caetano está na cabeça da gente. A cada dia é um deslumbramento pelo próprio ofício de compositor e de cantor”, acrescenta o jornalista de forma tão apaixonada como um Peri.
Uma característica latente que Kubitschek faz questão de acentuar é a forma como Caetano se posiciona diante de seu papel na sociedade, e que o torna um dos artistas que mais exalta a liberdade individual no país. Caetano se mantém como um intelectual lúcido que pensa a nação em todas as perspectivas, sejam elas culturais, políticas ou sociológicas, ressoando uma voz relevante e influenciadora entre os que querem brilhar e não morrer de fome. “Ele é um homem inteligente e corajoso. Ele tem um discurso amplo. Caetano está sempre na ordem do dia. É genial. Ele acredita em um Brasil mais luminoso”, destaca Kubitschek sobre a esperança caetaniana de que amanhã, a luminosidade, alheia a qualquer vontade, há de imperar.Já o imortal da Academia Paraibana de Letras (APL), Rui Leitão, se debruça sobre o texto e o contexto da criação de Caetano para produzir seu próximo livro. Com o título Caetaneando, a obra deve ser lançada em 2023 e vai analisar tudo o que há de bom na letra de 100 canções do compositor. O projeto é semelhante ao que o escritor paraibano realizou em Um olhar interpretativo das canções de Chico. “A música de Caetano quebra paradigmas na produção da MPB. Caetano tem essa diferença. Apesar de conter muita sabedoria nas mensagens que são importantes para a reflexão sobre a conjuntura política e social da época, as músicas de Caetano têm uma conotação diferenciada das canções de Chico Buarque”, analisa Rui Leitão. É que só Caetano sabe a dor e a delícia de ser aos 80 anos um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos.
Qual seu disco preferido do artista baiano?
Ato contínuo de quando amantes das músicas de Caetano estão reunidos é fazer listas de suas preferências da discografia do artista. É como se a escolha definisse quais são os traços de personalidade na diversidade criativa de Caetano que falam mais forte em cada um. Amador Ribeiro Neto não hesitou em responder. “O álbum que mais gosto é o Araçá Azul. Acho que é o álbum mais experimental, mais rico e o que mais chegou à minha cabeça. Quando a Edith do Prato abre o disco batendo e cantando, eu disse ‘Que voz é essa? O que é isso? O que Caetano está fazendo?’ São tantas coisas que ele faz nesse disco que são tão revolucionárias. É meu disco predileto, embora minha canção predileta seja Baby, que não está nesse álbum”.
Rui Leitão foi no caminho inverso. Escolheu a canção para definir o disco de 1984 como seu preferido. “Uma música muito interessante, que não perdeu a qualidade, com uma letra maravilhosa, é ‘Podres Poderes’. Essa música tem uma força de comunicação muito forte”, define o escritor, escolhendo o LP Velô.
De coração vagabundo e querendo guardar o mundo em si, Kubitschek Pinheiro citou vários até se decidir pelo sexto álbum de estúdio, gravado em 1971, quando ele estava exilado em Londres. “Transa é um disco muito forte. Foi um dos primeiros discos que comprei em LP e ficava enlouquecido com ele cantando ‘arrenego de quem diz que o nosso amor se acabou, ele agora está mais firme do que quando começou’. O disco é muito bonito, como a música ‘Triste Bahia’, com coisas de Castro Alves, as canções em inglês. É um disco cheio de signos”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 7 de agosto de 2022.