por Joel Cavalcanti*
Assim como a famosa sentença da filósofa francesa Simone de Beauvoir pontua: “Não se nasce mulher: chega-se a sê-lo”, identificar-se como pessoa negra é também uma construção social. Muitas vezes, essa percepção é dada pelo outro, pelo racista, e isso acaba por afetar a própria autoestima das pretas e pretos brasileiros. É para debater esse e outros assuntos e apresentar as manifestações culturais das mulheres pretas nordestinas que acontece de hoje até domingo, em Campina Grande, o Enegrecida - Festival de Artes Integradas, evento organizado por mulheres negras que conta com oficinas, palestras e apresentações artísticas.
Celebrando cinco anos do projeto ‘Enegrecida’, a primeira edição do festival acontece em quatro pontos da cidade: Cine-Teatro São José, Centro de Arte e Cultura da UEPB, Ordinária Comes y Bebes e Rua do Juá, no bairro do Tambor. O evento é gratuito e tem o objetivo de se firmar no mapa cultural campinense e de tornar negra a ‘Rainha da Borborema’ com música, arte e vivências de mulheridades afro-brasileiras. O festival contará com nomes atuantes da cena cultural paraibana, como a atriz, roteirista e produtora Danny Barbosa, a Mestra Penha Cirandeira, a atriz e produtora cultural campinense Joana Marques, além de artistas de outros estados do Nordeste.
“Algumas pessoas falam que Campina é uma cidade muito embranquecida, só que a gente entende que existe um contingente grande de pessoas negras na cidade vivendo em periferias. Precisamos trazer esse debate mais amplo para a sociedade civil como um todo, para que se enxergue o que é necessário falar sobre essas diferenças, sobre as cores das pessoas que estão ocupando os espaços de poder e porque não é debatida a questão racial aqui”, afirma Carol Brito, fundadora e diretora do projeto.
O nome festival já aponta que a percepção de identificar-se como uma pessoa negra é um processo, mais que um dado categórico impositivo que é definido quando se nasce. “Enegrecer é ocupar espaços. É um verbo de ação que tem a ver com tornar os ambientes mais ocupados por pessoas negras. E ele está no feminino, porque é importante se entender também como mulher negra. É uma ideia que tem a ver com movimento”, detalha Mariana Costa, mestre em Antropologia e colaboradora no Enegrecida.
Em uma realidade social na qual todos reconhecem a existência do racismo, mas ninguém se acha racista, e que, muitas vezes, as pessoas negras não se chamam de negras, o festival dedica parte de sua programação para refletir sobre a autoestima da mulher negra e entender o peso do racismo em aspectos sociais e psicológicos em suas vidas. “São vários os estereótipos, então é muito difícil a gente construir uma autoestima segura vivendo em uma sociedade muito racista. Tem a questão do cabelo, da cor da pele mesmo, dos traços negros que são vistos como feios. O festival Enegrecida vem com a proposta de elevar a autoestima da mulher negra, da beleza natural dela”, destaca a antropóloga.
O coletivo coloca em prática através de seus projetos as próprias vivências que cada uma das integrantes enfrenta na realidade social paraibana, que ainda apresenta vários obstáculos para que se usufrua de uma cidadania plena. “Eu vinha de uma necessidade pessoal de entender mais sobre mim e sobre as pessoas ao meu redor. Enegrecida é uma forma de abrir esse diálogo, trazer esse protagonismo e ter a possibilidade de debater mais essas questões”, explica Carol Brito.
Já a construção da autoestima é algo mais complexo do que uma atitude afirmativa dessas mulheres diante do espelho e de suas capacidades pessoais. Ela passa por uma série de fortalecimentos públicos e de garantias de acesso a espaços de convivência que precisam ser construídos a partir das diferenças. Por isso mesmo, o festival faz uso do termo mulheridades. “Nós temos mulheres na nossa programação que não são apenas cis-gênero, que se reconhecem com o gênero que nasceram. Temos a participação de mulheres trans e travestis, por isso é necessário questionar inclusive a Língua Portuguesa”, justifica a fundadora do Enegrecida.
Durante a programação, também será colocado um stand da Loja Enegrecida, com produtos e acessórios afro e o lançamento da Coleção Diretoria. A loja procura oferecer adereços de vestuário e bijuterias que reforçam a exaltação da ancestralidade e a beleza fora dos padrões ocidentalizados, que muitas vezes são difíceis de encontrar no comércio regular das cidades. “A gente sofre muito com os estigmas racistas sobre nossos corpos, sobre nossa pele, nosso cabelo. É muito importante chegar em um momento em que a gente pode ter um festival para celebrar as mulheres negras que atuam em diversas frentes artísticas e que transformam o local onde elas vivem”, frisa Mariana Costa, lembrando que essas mulheres estão diariamente representadas no noticiário submetidas a violências constantes. “A partir do Enegrecida, a gente vai colher muitos frutos positivos. Esse será um espaço de muita troca, de vivência e de muito afeto. Vai ser muito positivo, e espero que seja apenas o primeiro de muitos”, finaliza.
CONFIRA OS LOCAIS, HORÁRIOS E ATRAÇÕES DO FESTIVAL:
SEXTA-FEIRA (DIA 13)
Local: Cineteatro São José (abertura do festival)
19h - Abertura: Manu Rodrigues, Joana Marques, Jô Oliveira e Carol Brito;
Mestre de cerimônia: Ceiça Gomes
Roda de vivências: ‘Linguagens artísticas e protagonismo negro’
Convidadas: Aline Souza, Bruna Dias, Joana Marques e Flora Santos;
Mediação: Bruna Santiago
Performance artística ‘Corpo Alvo’, com Aline Souza
SÁBADO (DIA 14)
Local: Centro de Arte e Cultura da UEPB (oficinas)
8h - Oficina de Dança Contemporânea, com Elis Xavier;
10h15 - Oficina de Dança do Oeste da África, com Juliana Zacarias;
13h30 - Oficina de Fotografia Narrativa - Contando histórias através de imagens, com Bruna Dias;
16h15 - Oficina de Escrita Criativa - Do invisível ao desabafo, com Aline Souza
Local: Ordinária Comes y Bebes – shows (a partir das 20h)
Luanda Luz (BA) e Dorot (PB), com participação de Ilú Orin
DOMINGO (DIA 15)
Local: Centro de Arte e Cultura da UEPB (oficinas)
8h - Oficina de Dança Contemporânea, com Elis Xavier;
10h15 - Oficina de Dança do Oeste da África, com Juliana Zacarias
Local: Cineteatro São José – ‘Diálogos e cinema negro’
14h - Roda de conversa: ‘Mulheridades negras no cinema’
Convidadas: Danny Barbosa, Carine Fiuza e Cora Fagunde;
Mediação: Clara Farias
15h30 - Apresentação de curtas-metragens
Local: Rua do Juá, Tambor – Encerramento (a partir das 17h)
Slam com Manu Rodrigues, Manu Black, Jéssica Preta, Dorim , Aristeia Poetisa, Lama, Psicopreta e Passinho;
Roda de coco com Mestra Penha Cirandeira
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 13 de maio de 2022