Maria Isabel morou por muito tempo na humilde Rua da Paz, no bairro pessoense de Jaguaribe, nem imaginando que, no ano de 1974, seus filhos, Pedro Osmar Gomes Coutinho e Paulo Roberto do Nascimento (Paulo Ró), crias do bairro, seriam revolucionários da música popular, com a criação do grupo Jaguaribe Carne. Isabel e suas memórias da Rua da Paz foram-se com o tempo, mas a intensa atuação cultural dos filhos não ficou no passado. Gravado no Estúdio Peixe Boi, nos Bancários, Isabel, Sete Cirandas Negras e um Apito (distribuído pela Taioba Music), mais novo álbum do Jaguaribe Carne, aporta no mundo para quebrar o silêncio do estúdio, desde o último álbum autoral da banda, há 21 anos.
O trabalho estará disponível em tiragens limitadas — formatos CD (200 unidades) e vinil (100 unidades) —, com pré-venda no site da Taioba Discos a partir do próximo sábado (27). Nesse mesmo dia, o álbum sobe às plataformas digitais e será lançado em show do Jaguaribe Carne, a partir das 19h, no Clube Veteranos, em Jaguaribe, com entrada gratuita. Participam do show os cantores Escurinho e Totonho.
“A gente nunca saiu de Jaguaribe. Cada um foi pro seu canto, mas a gente continua tendo essa emoção de ‘morar’ em Jaguaribe”, afirma Paulo Ró, que deixou o bairro quando tinha por volta dos 18 anos. Ainda chegou a morar novamente por lá, saiu outra vez, mas, como ele mesmo diz, o bairro está visceralmente agarrado à sua carne, tal como o espírito experimentalista de seu heterodoxo grupo.
No ano passado, Pedro Osmar sofreu um acidente vascular cerebral, mas segue firme no Jaguaribe Carne — no começo do mês, subiu ao palco com sua zabumba durante o Festival de Sustentabilidade, Inovação e Cultura, promovido pela Fundação de Educação, Tecnologia e Cultura da Paraíba (Funetec). “Pedro está bem. Continua fazendo fisioterapia e tá comendo direito, porque ele é um menino peralta, só quer comer o que não pode”, brinca Ró.
O tributo fonográfico de Pedro e Paulo a Dona Isabel demorou cerca de um ano para ficar pronto. “Quando você vai ouvir o disco, você diz: ‘Rapaz, esse pouquinho de coisa durou um ano?’”, comenta Paulo, referindo-se às oito trilhas de sua lavra. Pensadas e criadas com cuidado, aos poucos as canções foram tomando forma, sem pressa de soltar a mão.
Seguindo o modus operandi que é próprio ao Jaguaribe Carne, as letras são de Pedro Osmar, enquanto que as melodias ficaram a cargo de Paulo Ró. Quando Dona Isabel morreu, Pedro escreveu uma série de pequenas poesias, em reverência póstuma. De pronto, Ró as musicou.
A tônica do afeto familiar faz-se tão presente que a esposa de Paulo Ró e suas filhas — Tina Nascimento, Tereza Cristina, Glória Nascimento, Naderdane Uloth — entoam as vozes femininas que o acompanham nas cirandas, conferindo brilho real às declarações filiais de amor. “Eu as chamei de Coro das Praias”, diz ele, em alusão ao município onde moram, Lucena.
Isabel, Sete Cirandas Negras e um Apito junta-se agora ao panteão histórico de Jaguaribe Carne Instumental (1993) e Vem no Vento (2003), os dois outros discos da banda. Quem assina o prefácio do encarte da obra vindoura é o jornalista Sílvio Osias, que conhece os irmãos desde a infância, no início do curso ginasial, em 1971, quando estudavam no Colégio Estadual de Jaguaribe.
“Pedro Osmar tinha 17 anos. Paulo Ró tinha 13, e eu, 12”, descreve Sílvio. “Paulo Ró é mais a música em si e Pedro organiza o movimento, como diz Caetano”, ele explica acerca da complementação artística dos irmãos.
Cirandas para Isabel
Com o ganzá forrando o terreiro, a zabumba pulsa forte em ressonar contido em 2/4 de tempo, dando a deixa do compasso para “Ciranda na Rua da Paz”. Composta por Totonho, que entra cantando amparado pelas vozes femininas de fundo, a canção de abertura do disco pede a mão e um sorriso para uma ciranda que atinge as notas mais agudas em prol de um tempo que (não) volta. O metal em tom saudoso evoca as memórias do lugar onde moraram, como dizia Vital Farias (1943–2025), os “apóstolos Pedro e Paulo” — Vital foi um primeiro professor dos irmãos, conforme relata o livro Jaguaribe Carne — Experimentalismo na Música Paraíba (2017), fruto da dissertação de mestrado em Música do baterista e pesquisador George Glauber Félix.
“Ele (Totonho) já tinha feito a música há um tempo atrás. Tinha mostrado a Pedro, e Pedro lembrou-se que Totonho tinha uma música falando exatamente da ciranda na Rua da Paz”, comenta Paulo Ró. Já “Caixa de joias”, segunda faixa, acelera o ritmo, com Paulo Ró cantando o encontro de Dona Isabel com os familiares Naná, Regina, Adauto, Fatinha e Osias, do lado de lá.
“Mamãe viajou na hora certa / juntou sua história com seu Osias” é a primeira parte de “Hora certa”, terceira faixa do álbum, a qual, como todas as demais, acaba por funcionar como um refrão. Logo na primeira audição, a mensagem de uma emoção palpável vem sustentada pelo Coro das Praias, ora apoiadas pelas batidas folk do violão.
Em entrada triunfal, o sitar de Felipe Kariri indianiza a melodia de “Tambores”, em cântico cadenciado que busca na “floresta da família” quem vai querer dar a mão a Dona Isabel para uma ciranda. A guitarra elétrica, representante-mor da subversão aos ditames estéticos nacionais de outrora, distorce o tempo repetindo semicolcheia incisiva que parece vir descolada da batida; ligeiramente atrasada no compasso do rock de “Ecoou”.
“Cocada”, como pré-enuncia, balança no coco e chama, para a grande roda de Jaguaribe, seu povo que partiu em viagem. Sétima canção, “Beca” sustenta o pilão e a canjica de Beca, gingando o ganzá até o dia amanhecer. Participam também do disco o duo Bravia, composto pelas violoncelistas gêmeas Mayra e Mayara Ferreira, que encantam as cordas na instrumental “Ciranda satélica”, orbitando, por último, o núcleo forte de Isabel.
- Dupla voltou aos palcos e o fará de novo no dia 19, com show gratuito no Clube Veteranos, em Jaguaribe
“Fizemos questão de deixar essa coisa do natural, do primitivo pra coisa ficar bem raiz”, comenta Paulo Ró. Para Sílvio Osias, o novo trabalho parece voltar a algo que precede a própria estética do grupo. “É uma coisa que já existe antes do próprio Jaguaribe Carne, só que eles fazem da maneira deles. Conversando com Paulo Ró, eu falei pra ele que quem está fazendo isso há alguns anos é Bob Dylan”, compara Osias. “O Jaguaribe Carne, hoje, e à maneira deles, recorre a fontes e matrizes que são muito anteriores ao próprio grupo. É um disco muito bonito; fiquei comovido quando ouvi”, acresce.
Quando passa, nos dias de hoje, pela Avenida Vasco da Gama, ou a Floriano Peixoto, Paulo Ró visualiza as casas que sumiram. Tudo virou outra coisa. Testemunhando o comércio, ele diz que a beleza das casas foi embora.
“É a história do progresso. Mas a gente tem essa capacidade de ficar com essas memórias do tempo que era bom. É o que vale”, reivindica. “É muito difícil a gente fazer essa música e fazer ainda o que estamos fazendo até hoje. Hoje em dia, não tem mais aquela coisa da música mesmo. Hoje tem que ser o ‘lengo-lengo’, né? A gente prefere não fazer (o lengo-lengo) e continuar”, conclui um dos mais importantes artífices da música popular paraibana, Paulo Ró.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de setembro de 2025.