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Mestra Penha

Cantos entoados de uma Paraíba profunda

publicado: 16/06/2023 13h01, última modificação: 16/06/2023 13h01
Ícone da cultura popular, artista paraibana está em uma turnê por São Paulo e lançando uma série de músicas do seu novo álbum
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Novo trabalho da Mestra vinda de Bayeux aborda a diversidade das manifestações culturais que permeiam a sua vida, como a Jurema Sagrada, mesa branca, aboio, grupos indígenas de Carnaval e o coco de roda - Foto: Renan Martins/Divulgação
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Da esq. para dir.: com acompanhamento musical de Juliana Costa, Mestra Penha também conta com sua filha, Bruna Nascimento, e Zé Silva, que também assina a produção do novo disco - Foto: Renan Martins/Divulgação
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Já estão disponíveis três canções no estilo do aboio do ‘Paraíba profunda’ - Imagem: Becken Lima/Divulgação
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Disco - Aboios - Divulgação.jpg

por Joel Cavalcanti*

Quando a Mestra Penha tinha cerca de 10 anos, ela ia trabalhar cortando cana-de-açúcar e via o seu pai conduzir do alto de um cavalo as duas cabeças de gado que tinha para pastar logo cedo pela manhã. Com o nascer do sol, o som que cortava o dia era o da vocalização arrastada e melódica que seu pai produzia para tanger o boi. Ainda criança, Penha só podia ouvir aquelas interjeições rústicas feitas de improviso. “A gente morava na Usina Santa Helena (em Sapé). Eu escutava ele aboiando, cantando enquanto trabalhava. Foi lá onde eu aprendi a tocar bombo e ganzá com ele. Quando era de meio-dia, a gente trazia de volta para casa o gado para tomar água”, relembra a artista paraibana.

É a partir dessa vivência que a Mestra da Cultura Popular, Penha Cirandeira, lança em todas as plataformas digitais de áudio os três primeiros singles de seu novo álbum chamado Paraíba profunda. O disco está tendo suas faixas divulgadas seguindo uma ordem definida por cada ritmo específico de tradição musical popular. As três primeiras músicas lançadas são exatamente as que seguem o estilo do aboio, e se chamam ‘Minha vida é um romance’, ‘Minha mãe teve três filhos’ e ‘Da vaca quero o leite’. O disco possui ao todo 14 faixas e aborda a diversidade de manifestações culturais que permeiam a vida da Mestra, como a Jurema Sagrada, a mesa branca, o aboio, os grupos indígenas de Carnaval e o coco de roda. As gravações aconteceram nos estúdios Boa Nova (PB) e Traquitana (SP).

É justamente em São Paulo onde a artista registrada em Bayeux está no momento. Ela vem apresentando o repertório de Paraíba profunda numa turnê pelo Sesc desde o último dia 7, e só retorna a João Pessoa no próximo dia 26. Hoje, ela estará no Instituto Tambor, e amanhã, no Parque Chácara do Jockey. A última apresentação dessa temporada paulista acontece no dia 24, no Sesc Birigui. É lá onde ela vem aboiando seu canto que, ao invés do gado, conduz os relatos de sua vida. Minha vida é um romance / de tristeza e ilusão / parece que o destino veio me trazer traição / Minha esperança é perdida / Se eu cantar a minha vida / Dói em qualquer coração / Já amei e fui amado / Já bebi bem satisfeito / Já perdi a mocidade / Já tive tudo que eu tinha direito / Minha esperança é perdida / Se eu cantar a minha vida / Vai doer dentro do meu peito.

“Meu pai cantava esse aboio, mas tirei ele de um jeito diferente para cantar sobre a vida que eu passei. Ficou meio doidinha, mas fui eu mesma que inventei”, conta a Mestra sobre a relação com o pai, José Francisco do Nascimento, de origem quilombola e nascido em Caiana dos Crioulos. Com Seu José Francisco ela aprendeu o manejo do facão no corte da cana. Mas também foi com ele que viu a arte de tocar, dançar e cantar o coco de roda e a ciranda. “Ele tinha cinco filhos, mas ele só me levava quando saía. Eu era a mais interessada nas músicas e nos cantos dele. Quando era no sábado e domingo, que ele gostava de tomar uma cachaça, entonces ele me colocava na garupa do cavalo. Às vezes, ele ficava bêbado, e os amigos deles me colocavam na garupa. Eu segurava na cintura dele e era o cavalo que trazia a gente para casa porque já sabia o caminho”.

Que esses aprendizados e heranças ancestrais tenham dado a ela a profissão de artista, se apresentando para plateias de todo o país, ainda é algo que a surpreende. Penha ainda se assusta um pouco quando está diante de um palco. “No meu coração, eu já chamo pelo nome de Deus e pelo nome de meu pai para eu não errar nada. Depois, eu desço do palco e começo a dar uns gritos que meu pai me ensinou para o nervosismo ir embora”, conta. A relação com a fé, calcada no sincretismo religioso, que congrega os cultos de origem indígenas, afro-brasileiras e católica estão no cerne da música de Mestra Penha e em suas experiências mais místicas. Quando era ainda muito nova, ela era proibida de participar dos rituais de mesa branca com seus pais, mas, mesmo assim, observava a tudo escondida.

“Depois que eu cresci, teve um probleminha comigo. Entonces, minha mãe me achou dentro de uma mata. Não sei o que me deu e eu corri para dentro da mata e passei lá três dias com todo mundo me procurando. Quem me achou foi um caçador e avisou o meu pai que tinha me visto no chão, dormindo. Eles foram me pegar e me levaram para a casa de um rezador. Foi quando ele me disse que eu tinha uma entidade para trabalhar, e todas elas eram Juremeiras e fizeram os banhos para mim”, conta Penha, que só adulta resolveu finalmente procurar a Jurema Sagrada. A religião praticada principalmente na Paraíba, mas que é encontrada também no Rio Grande do Norte e em Pernambuco, tem a Mestra Penha como uma figura em posição de destaque.

De origem extremamente pobre, o maior sonho de Penha Cirandeira ainda é o de possuir uma casa própria para viver com seu filho e uma neta. A sua trajetória é um reflexo da dedicação à preservação e difusão da cultura popular. As performances e realizações da Mestra demonstram o poder transformador da arte, e que está mais uma vez provado no álbum Paraíba profunda. “Sou muito querida por todo mundo por causa da minha voz. Aqui, em São Paulo, e na Paraíba, o pessoal me adora. Nunca pensaria, lá atrás, em ser uma artista, ter essas viagens que eu nunca tive e ser tratada dessa forma. Hoje, eu sou o que sou, e amo estar dentro dessa cultura”, conclui Mestra Penha.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 16 de junho de 2023.