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Celebrando os 120 anos de nascimento da principal representante da 2a geração do modernismo brasileiro, é lançada série de nove ensaios-reportagens produzidos entre 1939 e 1940

Cecília Meireles, profissão: repórter

publicado: 21/03/2022 09h31, última modificação: 21/03/2022 09h31
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Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo

por Joel Cavalcanti*

Tem-se dito que o Brasil é um deserto de homens e de ideias… Talvez não seja um deserto de mulheres. E enquanto houver mulheres capazes de lutar sozinhas, e mulheres capazes de prestar colaboração tão eficiente, há esperança de que as lutas sejam ganhas, e os trabalhos cheguem ao fim, com o maior êxito”. Talvez a prosa não seja dessa forma facilmente reconhecida. Talvez a atualidade do tema do mercado de trabalho para as mulheres não ajude a referenciar a sua autoria. Mas as aspas que abrem esse texto têm a assinatura da escritora, professora e jornalista Cecília Meireles, em texto publicado em julho de 1939.

Como forma de celebrar os 120 anos da principal representante da segunda geração do modernismo brasileiro, comemorados no último mês de novembro, a editora Global lança Um país no horizonte de Cecília, antologia com nove ensaios-reportagens produzidas entre 1939 e 1940 para a revista O Observador Econômico e Financeiro. Com sensibilidade e primor textual, a repórter Cecília analisa de forma pessoal e em profundidade temas como os desafios educacionais brasileiros – com especial atenção para as condições de trabalho dos professores e o sistema de ensino de jovens e crianças –, os entraves na sociedade que se impunham às mulheres e até sobre a importância da moda na vida das pessoas.

“Ela desenha finos retratos da posição das mulheres na sociedade brasileira da época e as barreiras que elas tinham pela frente para serem igualmente reconhecidas dentro mercado de trabalho, também impressionam por fazerem vir à tona preocupações e desafios que ainda testemunhamos entre nós”, destaca Gustavo Henrique Tuna, doutor em História Social pela USP e Gerente Editorial da Global. Foi ele quem garimpou os textos nos arquivos da Biblioteca Nacional e que estavam até então inéditos em livro. Segundo o historiador, essa foi a única vez que Cecília concebeu reportagens com este teor e com esta extensão.

Duas características principais aproximam os interesses da poeta com a repórter: o apreço que ela devota à história, que já se conhecia em obras como Romanceiro da Inconfidência (1953), e sua preocupação com a humanidade. “Em que pese o fato de estar lidando muitas vezes com números, ela mantém suas atenções sobre as alegrias e aflições das pessoas. Seja expondo os desafios do cotidiano dos professores, seja abordando as particularidades do mercado de trabalho para as mulheres no Brasil, Cecília joga luz sobre a vivência dos seres humanos ali em tela, sobre suas angústias e expectativas”, compara o especialista, que ressalta o rigor que a escritora demonstra na apuração das informações, entrevistando um número expressivo de pessoas. E foi realizando as entrevistas para esses ensaios que Cecília Meireles conheceu seu segundo marido, o engenheiro agrônomo e diretor da Escola Nacional de Agronomia Heitor Grillo.

Passadas mais de oito décadas da publicação, as análises jornalísticas da escritora vinham passando despercebidas do interesse dos pesquisadores, e uma das hipóteses é que a poesia de Cecília acabava por fazer sombra em suas outras produções literárias, que ainda precisam ser descobertas. “Vejo inclusive que ainda hoje a produção dela no campo da crônica, que é vasta e se encontra parcialmente publicada, permanece pouco conhecida e valorizada, ainda que seja de uma qualidade suprema, assim como seus versos”, atenta Gustava Henrique Tuna.

Seja debatendo sobre a vida do professor no contexto e reformas educacionais projetadas no Brasil nos anos 1920 e 1930 em Economia do Magistério, seja articulando ideias sobre as privações que os artistas enfrentavam no país em Economia do Intelectual, ou ainda quando cria um retrato da posição das mulheres na sociedade brasileira da época em Trabalho feminino no Brasil e Cenas do trabalho feminino; Cecília Meireles se mostra atual e necessária. “É admirável percebermos que a maior parte das reflexões por ela tecidas nestes ensaios prosseguem de pé. Impressionam por fazerem vir à tona preocupações e desafios que ainda testemunhamos entre nós”.

São nos textos mais analíticos já produzidos pela escritora que fica latente a fonte de um de seus maiores fascínios e entusiasmo: a história do Brasil. “Cecília faz questão de situar historicamente o tema escolhido por ela em quase todos os nove ensaios, muitas vezes recuando bastante no tempo para compreender como determinadas conjunturas políticas, econômicas e sociais se formaram. Por se enquadrarem no campo da não ficção, esta paixão pode ser sentida de forma mais evidente”, considera o organizador de Um país no horizonte de Cecília.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 20 de março de 2022