Música, tradição popular, exposições, feira de livros, oficinas, lançamentos literários, batalhas de MCs, contações de histórias e debates, tudo alinhavado pelos fios encantados da literatura. Guiado pelo tema “Nossa terra, nossa gente — Ancestralidade, identidade e o futuro da democracia”, começa hoje e vai até sábado (29) o 2o Festival Literário Internacional da Paraíba (FliParaíba), evento gratuito no Centro Cultural São Francisco, no Centro da capital. A cerimônia de abertura acontece às 20h, acompanhada às 21h pelo concerto da Orquestra Sanfônica Balaio Nordeste. Mas o evento já estará aberto desde as 16h, com a feira de livros e lançamentos literários (que são dezenas ao longo dos três dias de evento).
Entre os destaques, amanhã e sábado passarão pelas mesas temáticas na Nave Central da igreja escritores paraibanos e nacionais premiados, à guisa de Bráulio Tavares (PB), Edney Silvestre (RJ) e Itamar Vieira Júnior (BA). Mas os debates guardam surpresas internacionais, a exemplo de literatos portugueses como a escritora e tradutora Inês Pedrosa (presente amanhã, às 15h, na Mesa 3 — “Mulheres que fundam mundos”) e o secretário de Estado da Cultura em Portugal e escritor Alberto S. Santos (que fala no sábado, às 11h30, compondo a Mesa 7 — “O corpo político da língua”). Em conversa com A União, os convidados teceram um panorama a respeito de suas influências, visões de mundo, processos criativos e, claro, feiras literárias.
Alma brasileira
“Conheço várias partes do Brasil e nenhuma me desiludiu. As pessoas são a força dos lugares, e no Brasil tenho tido sempre encontros inspiradores. A combinação entre beleza extrema e extrema proximidade do abismo, própria do Brasil, cria grandes almas”, decanta Inês Pedrosa acerca das contradições tupiniquins.
Nascida em Coimbra em 1962, Inês sente-se tão brasileira quanto portuguesa. Cresceu embalada pela nossa MPB, chorou quando criança ao ler O Meu Pé de Laranja Lima (1968), de José Mauro de Vasconcelos, e o primeiro romance que lhe deu vontade de escrever romances foi Clarissa (1933), de Érico Veríssimo. Para ela, o “brasileiro” caricatural dos romances de Camilo Castelo Branco era na verdade um português que, depois de fazer fortuna e engordar no Brasil, regressava a Portugal, onde comprava uma noiva e se estabelecia.
Em seus livros Fazes-me Falta (2002) e A Eternidade e o Desejo (2007), a perda quase se afigura como uma personagem. Para Pedrosa, diante de uma sociedade hiperconectada, em que ninguém consegue sumir de fato das redes, além de possível nos mesmos termos, a falta é motivo improtelável.

- A portuguesa Inês Pedrosa, escritora e tradutora, começou no jornalismo; ela participa de mesa amanhã, às 15h | Foto: Divulgação/ AlfredoCunha
“Há o ghosting. O império das fake news reativa o antigo gaslighting. A velocidade da vida — paradoxalmente cada vez mais longa — favorece o extremismo dos encontros e dos desencontros. A sensação de perda prévia parece-me um problema fundamental para a juventude de hoje”, destaca.
A escritora já chegou a chamar o acordo ortográfico da língua portuguesa de “desconchavado” ou “desacordo correto”. Tendo “estourado” com os parâmetros lógicos da língua, que nos permitiam a detecção dos erros, não estabeleceu, para ela, acordo algum. “Que, aliás, não seria desejável; a glória da língua portuguesa está também na variedade das suas sintaxes”, pontua.
Herdeira de longa caminhada junto à prática jornalística, em imprensa e rádio — Inês entrou para as redações aos 20 anos de idade —, ela afirma ter aprendido por intermédio do jornalismo o significado da exploração capitalista dos assalariados no seu máximo fulgor, e sobre como sobreviver aos assédio moral e sexual, mesmo sem saber, à época, nomeá-los.
“Além disso, dei-me a oportunidade de viajar e de conversar com gente muito talentosa e inteligente que, sem o jornalismo, não teria conhecido. Creio que tudo isso beneficiou a romancista”.
Sobre as festas literárias, diz viver pura e simplesmente a força desses encontros enquanto oportunidades para interagir, “pensar em voz alta” com os leitores e descobrir outros escritores, vozes com as quais possa, eventualmente, imaginar mais e melhor.
No ramo ficcional, Inês Pedrosa é autora, entre outros, de Nas Tuas Mãos (1997), Desamparo (2015) e O Processo Violeta (2019) — também publicou coletâneas e antologias. “Agora estou a escrever um romance sobre o dia a dia do fascismo, porque me irrita ouvir tantos jovens ignaros a dizer que na ditadura se vivia melhor. A ira é uma grande musa”.
Romances históricos
Pela primeira vez em João Pessoa, o político, advogado e escritor Alberto S. Santos, natural de Paço de Sousa (Penafriel), em Portugal, já esteve em Bananeiras e guarda do estado boas lembranças. “Agora, ao regressar para participar do FliParaíba, as expectativas são elevadas. Espero descobrir novos rostos, novas leituras e trazer comigo esse encontro para o meu trabalho literário, que se alimenta justamente dos intercâmbios culturais, da história e das identidades que cruzam territórios”, diz ele.
O início da carreira se deu com o best-seller A Escrava de Córdova (2008), obra que bem denota a forte atração do português pela história — especialmente dos heróis anônimos, herdeiro da tradição italiana da micro-história de Carlo Ginzburg e Giovanni Levi.
“O tema da FliParaíba 2025 fala justamente desses tópicos, e nisso a curadoria está de parabéns”, ele aponta. “Na terra há memória, há raízes; na gente, há diversidade, transformação; nessa ancestralidade, há vozes que atravessam tempos; na identidade, há (re)construção; e a democracia, que é pano de fundo, também se alimenta dessas tensões, desses encontros, dessas vozes múltiplas”.
Em sua ficção histórica traduzida para várias línguas — fazem número as obras Para Lá de Bagdad (2016), Amantes de Buenos Aires (2019) e o mais recente, A Senhora das Índias (2024) —, Alberto S. Santos procura mostrar como o passado interfere no presente e faz vislumbrar futuros, sob cruzamentos de culturas, indivíduos e memórias esquecidas.
“No meu processo, o que vem primeiro varia de obra para obra. Mas há algo que frequentemente é o gatilho: uma imagem forte, um acaso, uma conversa banal. Mas também uma paisagem, um instante, um rosto que me chama atenção. A partir daí, pode emergir uma frase-âncora ou uma voz que quer ‘falar’. Logo a seguir, aparece o conflito, ou então um contexto histórico que me intriga”, ressalta.
Atravessar o Atlântico e reencontrar o Brasil, onde, por tantas vezes, recolheu-se para escrever partes de seus livros, é razão de júbilo para o autor. Obcecado pelo detalhe histórico e desafiado pelo “território”, que tanto lhe impediu no início de escrever algumas vozes, épocas e geografias, o autor avança para além da Taprobana, na direção de um novo mundo.
“Uma história local, uma paisagem nordestina, uma ancestralidade paraibana que me chame à escrita e à Paraíba. Ou então um personagem, um encontro com um leitor ou autor, com gente da cidade ou da zona rural, alguém cujo modo de vida, história ou voz me toque e me convide para ficcionar. Melhor seria uma amizade”.
Através deste link, acesse a programação completa
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 27 de novembro de 2025.