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Celebrando Maria

publicado: 11/09/2024 09h30, última modificação: 11/09/2024 09h30
Tira de Henrique Magalhães se torna patrimônio imaterial da Paraíba às vésperas de completar 50 anos
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A criação de Henrique Magalhães (no detalhe) alcançou o reconhecimento por sua longa estrada nos quadrinhos paraibanos | Imagem: Reprodução

por Esmejoano Lincol*

A personagem mais engajada dos quadrinhos do estado acaba de ser eleita patrimônio cultural imaterial da Paraíba: Maria Espirituosa – ou simplesmente Maria –, criação do artista pessoense Henrique Magalhães, foi objeto deste reconhecimento a partir da Lei nº 13.343, de autoria da deputada estadual Cida Ramos e sancionada pelo governador João Azevedo. A matéria foi publicada no Diário Oficial do Estado (DOE), no dia 27 de agosto.

No ano que vem, essa figura conhecida das revistinhas e dos jornais locais completa 50 anos de existência. Mas Maria se origina de um ponto anterior, a partir da vocação que seu desenhista exercitou desde muito cedo. “Quando criança, me interessava pelos livros de colorir. Logo comecei a copiar os desenhos das histórias em quadrinhos, ampliando-os, criando pôsteres. Foi na adolescência que comecei a criar os meus próprios personagens”,  ele recorda. 

Tira comemorativa de “Maria”: publicação semanal no Instagram | Imagem: Reprodução

Depois de algumas experimentações, e inspirado pelas imagens das mulheres da família do quadrinista, Magalhães desenvolveu Maria, personagem de cabelos loiros e encaracolados, com vestido que marca e dá ares cartunescos à sua silhueta. As primeiras tirinhas com a sua criação datam de 1975. “Ela foi decisiva, no sentido de definir como eu gostaria de trabalhar nos quadrinhos, a partir da comicidade. Publiquei primeiro em revistas independentes e no jornal O Norte, vínculo que tive por muito tempo”, detalha.

Magalhães também publicou em A União e em O Pirralho, suplemento infantil do jornal, que circulou na segunda metade da década de 1970: a primeira aparição de Maria aí foi na edição de número três, em julho de 1976. Meses antes, também em A União, Maria e seu criador foram temas de resenhas, escritas pelo editor Antônio Barreto Neto e pelo jornalista Marcos Tenório. “A União foi extremamente importante para mim e toda a minha geração de quadrinistas paraibanos, por acolher um material muito imaturo, como incentivo à publicação”, ele informa.

Nascida em um contexto político complexo — o regime militar, de 1964 a 1985 —, a personagem se tornou instrumento de denúncia da situação da mulher naquela época, relegada a ser um “indivíduo de segunda categoria”, segundo Magalhães. “Nas histórias desde este começo, Maria tomava as decisões, ela sempre ia atrás de seu objeto de paixão. Quando eu entrei na universidade, na minha primeira graduação, em Arquitetura, em 1976, passei a ter contato com um contexto político, de lutas contra o sistema”, rememora.

Essa realidade foi absorvida por Maria e suas histórias, que passaram a ganhar outros contornos, ampliando o leque temático da personagem — calcado, antes, em suas aventuras amorosas. “Tive raros casos de censura, mas nenhum à nível institucional, pelo próprio regime. Havia tolhimento editorial, no sentido de excluir tiras ou cortar textos que incomodavam ou que não estavam alinhados à política do jornal. Me incomodava, porque não queria essas alterações”, lamenta Magalhães.

Sendo Maria

Em 1981, com o ingresso no curso de Comunicação Social, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Henrique Magalhães passou a espraiar o seu engajamento político e a sua produção artística. Ao lado de amigos, fundou o grupo Nós Também, que reunia ativistas e simpatizantes do movimento LGBTQIAPN+ em João Pessoa. Aproximando-se do cinema, produziu curtas metragens que compõem a chamada “onda de filmes queer”, obras audiovisuais de vanguarda que discutiam a sexualidade humana. Anos mais tarde, o artista seguiu carreira acadêmica, tornando-se professor dos Departamentos de Comunicação e de Mídias Digitais da UFPB. 

Mesmo sendo um homem que dá “voz” e imagem a uma mulher, Henrique diz que nunca foi cobrado pelo movimento feminista paraibano por estar fora de seu lugar de fala – expressão comum para definir a representatividade (ou a ausência dela) em indivíduos e seus discursos. “Acho que pelo fato de ser gay, tenha facilitado. Havia e há uma luta conjunta entre nós e as feministas. Existem inclusive curta, desenvolvido como trabalho de conclusão de curso, citando a relação de mulheres paraibanas com ela”, explica o desenhista, citando o filme Maria por Marias, documentário de Karla Karini.  

Em cima: a primeiríssima tira de “Maria”, publicada em “O Norte”, em 1975; embaixo: uma das primeiras aparições da série em “A União”, em 1976 | Imagens: Reprodução/Arquivo A União

A abertura política do país, nos anos 1980, propicia o fim da chamada “primeira fase” da personagem, que arrefece à luta contra a ditadura e passa a tratar da diversidade — Maria passa a questionar e explorar sua própria sexualidade em conversas sua amiga Pombinha, e em consonância com a realidade vivida por seu criador. “Ela sempre foi acompanhando a minha ‘flutuação política’, numa perspectiva socialista e combativa. Eu falo por ela e ela fala por mim e é porta-voz mas a de muita gente que se identifica com ela”, declara.

Maria nunca deixou de ter lugar cativo na trajetória artística do quadrinista. Ainda na década de 1970, Maria ganhou uma revistinha própria, editada, a princípio, de maneira artesanal pelo próprio Henrique. Décadas mais tarde, a editora Marca de Fantasia, criada por ele, passou a abrigar edições digitais da publicação. Hoje, as tiras são postadas semanalmente no perfil de Henrique no Instagram. Além disso, desde o mês de maio, o artista tem publicado em seu canal no YouTube a série Bastidores de Humor, conjunto de vídeos que revela os processos criativos por trás de Maria.

Henrique celebra esse reconhecimento como patrimônio cultural imaterial do estado, sobretudo por dar à produção em quadrinhos a importância que ela de fato tem. Ele completa afirmando que a autora da lei, Cida Ramos, é uma das representações do personagem. “Ela é uma guerreira que enfrenta as injustiças sociais e os preconceitos que a sociedade carrega. Quando Maria luta pelas próprias causas libertárias, ela luta para que todos nós tenhamos essa possibilidade – a de sermos quem somos”, finaliza Henrique.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 11 de setembro de 2024.