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Celebrar Bertrand

publicado: 29/05/2024 09h16, última modificação: 29/05/2024 09h19
Cineasta paraibano recebe homenagem hoje no FestinCineJP e relembra trajetória que começou nos filmes super-8 dos anos 1980

por Esmejoano Lincol*

Bertrand Lira não nasceu mesmo para arrancar dentes sisos. Apesar da formação em Odontologia, o cineasta paraibano nascido no Sertão, em Cajazeiras, percebeu que sua “praia” era a fotografia e o cinema. Celebrando mais de 40 anos de atividade no audiovisual, Bertrand é um dos homenageados do 2o Festival Internacional de Cinema de João Pessoa (FestinCineJP), que exibe hoje O Seu Amor de Volta (Mesmo que Ele Não Queira), longa mais recente do cineasta. A projeção acontece na sala 2 do Centerplex do MAG Shopping, às 14h. A entrada é franca e os convites podem ser retirados no hall de entrada do cinema, meia hora antes do início desta e de outras sessões.

Bertrand vem de uma família de artistas. Dos 12 irmãos, três deles, Soia, Buda e Nanego, estão em atividade na dramaturgia desde a infância, quando montaram o grupo de teatro Terra, nos quintais de Cajazeiras. Outros três do clã dos Lira - Paula, Salvinho e Gracinha - trabalham no campo das artes, mas como professores. O diretor homenageado pelo FestinCineJP também atuou como ator, por um curto espaço de tempo. “Meu pai gostava muito de música e dizia brincando que queria ser cantor. Mas ele só cantava quando bebia. Os artistas da família nasceram na minha geração”, explica.   

Transferiu-se para João Pessoa na segunda metade dos anos 1970, para estudar na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pouco antes de concluir Odontologia, ingressou no recém-formado curso de Comunicação Social, numa época em que era possível acumular duas graduações em andamento. “Não havia cursos de Cinema próximos da gente. Quem tinha o desejo de trabalhar com fotografia ou audiovisual buscava a Comunicação. Também tinha o desejo de utilizar esse conhecimento para denunciar as injustiças”, rememora o realizador, que soma uma dezena de filmes no currículo.

Abandonando o cinema?

Enquanto estudante da UFPB, teve suas primeiras experiências no audiovisual. Em 1980, produziu com o então colega Torquato Joel o curta-metragem Beba Coca, Babe Cola. No ano seguinte, dirigiu o seu primeiro documentário solo: Perequeté, que retratava da vida do artista paraibano Francisco Marto. A produção de filmes com temática LGBTQIAPN+ por alunos do curso de Comunicação da Paraíba – incluindo Perequeté – compõe aquilo que é recentemente chamada de “onda de filmes queer na Paraíba”. Esses curtas, produzidos em película de cinema modelo super-8, ganharam uma restauração recente, produzida pela ONG CineLimite, e foram projetados há algumas semanas numa mostra em Nova York.  

Ainda durante a graduação, ele foi convidado para integrar estágio de cinema que promovia intercâmbio de estudantes paraibanos com uma instituição francesa. Bertrand passou alguns meses na Europa, onde aprimorou seus conhecimentos sobre a sétima arte ao lado de Torquato e da também cineasta Vânia Perazzo. “Vieram professores franceses para ministrar cursos em João Pessoa. Para sermos selecionados no intercâmbio, precisávamos ter concluído o filme que deveríamos produzir ainda no Brasil. Como fui o primeiro da leva a concluir, eles me indicaram para viajar”, relembra.

Formado, teve que abandonar temporariamente o ofício de diretor para trabalhar como jornalista. “Tinha que sobreviver. Trabalhei como assessor de comunicação da Secretaria de Estado da Saúde e da Funesc. Mas durante a experiência no Espaço Cultural, fui convidado para trabalhar como programador do Cine Bangüê”, recorda. Após um grande período de hiato, ele realizou o curta Tá Sentindo o Cheiro de Queimado?, sobre bandas de rock pessoenses, assinando com Everaldo Pontes.

No final da década de 1990, Bertrand decidiu seguir carreira acadêmica, cursando mestrado em Sociologia pela UFPB. Logo depois, foi aprovado em concurso público na mesma instituição, tornando-se professor do curso de Comunicação Social, na habilitação em Radialismo. Mais tarde, também cursou doutorado e transferiu-se para o curso de Comunicação em Mídias Digitais, onde se aposentou em 2019. “Tava procurando uma carreira que me desse estabilidade. E eu também sempre gostei muito de dar aula”, relata. 

Retomou sua carreira como realizador no início dos anos 2000, com o documentário Bom dia, Maria de Nazaré!, que retrata o dia a dia de uma rádio comunitária localizada num bairro periférico da capital: “Este curta foi feito de maneira despretensiosa, mas me rendeu o meu primeiro prêmio internacional, no Japão. Viajei para recebê-lo e além do troféu, ganhei uma câmera filmadora”.

Outro filme de destaque na carreira de Bertrand é O Rebeliado: este dá enfoque à vida de Clóvis Bernardo, ex-travesti, e, àquela época, pastor evangélico da Igreja Assembleia de Deus Missão, do bairro do Altiplano. Bertrand conseguiu convencer Clóvis a se travestir uma última vez, para a cena que fecha o documentário.

Seguindo na carreira

O Seu Amor de Volta (Mesmo que Ele Não Queira) foi produzido em 2019 junto com seu outro filme mais recente – o curta-metragem Brazil, Cuba, dividindo a direção deste último com o mexicano Arturo de la Garza. O documentário exibido hoje no FestinCineJP retrata o universo da predição da sorte (sobretudo no amor) e as pessoas que acreditam no que dizem as cartas e os búzios. O título deste longa, inclusive, foi baseado nos clássicos anúncios das paredes e postes das cidades.

No centro, entre os colegas cineastas Torquato Joel e Marcus Vilar: início em conjunto nos anos 1980 | Foto: Bertrand Lira/Arquivo pessoal

No elenco estão as atrizes Marcélia Cartaxo, Zezita Matos e Danny Barbosa, que contam passagens de suas vidas reais entrecortadas com textos ficcionais. Em uma das sequências mais celebradas por Bertrand, Marcélia encarna Macabéa, premiada personagem da atriz extraída do filme A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, baseada na obra de Clarice Lispector.

“Este filme provoca muito o espectador, que tenta descobrir o que é verdade e o que é ficção. Ele também me trouxe muitas alegrias, sobretudo o reconhecimento da crítica. Na época do lançamento, Jean Claude Bernadet e Carlos Alberto Mattos, escreveram textos tecendo elogios”, destaca Bertrand. 

O cineasta está revisitando o seu primeiro documentário, Perequeté. Após contato com Francisco Marto, que desenvolveu uma carreira sólida como artista nos Estados Unidos, ele decidiu filmar uma sequência do curta-metragem dos anos 1980, intitulada Meu Nome é Marto, a ser lançada em breve. Em visita a Nova York, ele registrou mais algumas sequências deste novo projeto.

“No ano passado, Marto esteve em João Pessoa e fomos a alguns dos locais onde gravamos o primeiro filme. Ele se emocionou em alguns momentos, como na passagem em que relembrou a morte da tia, que aparece no curta”, detalha.

Em Nova York, apresentando a cópia restaurada de Perequeté, ele diz ter vivido mais um grande momento de sua vida. Bertrand celebra este momento da carreira junto com a homenagem do FestinCineJP. “É uma honra poder receber este tributo a esta altura da vida. Muito importante que tenhamos um evento que também se volta para o mercado. Na primeira edição do FestinCineJP, além de ganhar prêmio, conseguir vender o meu filme para exibição no Canal Brasil”, finaliza o cineasta. 

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 29 de maio de 2024.